19 livros pra caçar na Feira da Usp
Romance, poesia, conto, ensaio, jornalismo, artes visuais e quetais
Amanhã começa a 25a Festa do Livro da Usp, com seus voluptuosos descontos e filas cheias de estudantes à beira de ataques de nervos. Pra te dar uma mãozinha, um #pilhadeleiturasperdidas especial - todos livros lançados em 2023.
19
Anjo da Morte.
Baviera Tropical: A história de Josef Mengele, o médico nazista mais procurado do mundo, que viveu quase vinte anos no Brasil sem nunca ser pego, de Betina Anton (Todavia). Quem nos anos 1970 viu o filme Meninos do Brasil, baseado no livro de Ira Levin, e leu reportagens sobre as experiências bizarras que o “médico” de Auschwitz conduzia com suas milhares de vítimas, tem o nome Mengele tatuado no centro nervoso do medo. Mas, em 1979, ao terror suscitado pela menção do Anjo da Morte seguiu-se a indignação e a vergonha em descobrir que o monstro estava bem aqui, nadando numa boa no mar de Bertioga, até se afogar num descuido – quando soube disso, tive a prova inconteste de que nem justiça nem Deus existem. Anton foi aluna de Liselotte, a professorinha fofa que escondeu o nazista na comunidade alemã paulistana, exemplo acabado da banalidade do mal de Hannah Arendt. Há outras biografias de Mengele mas este é o primeiro livro que foca a vida do psicopata no Brasil, pois a repórter teve acesso a suas cartas até hoje inéditas.
18
Eu sou foda.
Puta Livro Bom, de Jason Mott (Record). Pior é que é verdade: peguei e não consegui largar. Na tradução foda de Rogério W. Galindo, duas tramas se misturam nesse romance tão engraçado quanto comovente: a história do ególatra autor do livro-título, em book tour pelos EUA e às voltas com dificuldades psíquicas em separar sonho de realidade, e a de Fuligem, menino cujo tom de pele mais escuro do que a noite é alvo de inúmeros ataques e que por isso é ensinado pelos pais a desenvolver o talento de ficar invisível.
17
Horror nas redes.
Este Post Precisou Ser Removido, de Hanna Bervoots (Rua do Sabão). Como vivem, se alimentam, transam, sofrem e pensam os moderadores de conteúdo das redes sociais? Esta é a premissa genial deste pequeno romance da jovem holandesa, tradução de Daniel Dago. Enquanto luta para preservar o relacionamento com a namorada, que também é sua colega de trabalho, a narradora tem diversas tretas com os colegas – um mais esquisito que o outro – enquanto descreve em detalhes sórdidos as cenas mais baixas que o ser humano é capaz de compartilhar na internet. As cenas inomináveis que a equipe é obrigada a relativizar todos os dias – o que é pior, mostrar um mamilo ou transar com um bebê? Cortar fora o próprio pé ou postar uma suástica? – vão aos poucos minando as fronteiras éticas de cada funcionário. Não é livro pra quem tem estômago fraco ou medo de investigar a torpeza moral humana.
16
Por que eu?
Bully Bully, de Bruno Guma e Yuri Moraes (Darkside). Faz tempo que estou pra falar desta graphic novel inquietante, silenciosa (sem diálogos). No exímio preto-e-branco de Guma, que lembra a Black Hole de Charles Burns (e ilustra este post), a narrativa de Moraes acompanha as desventuras de um garoto abusado desde pequeno, mesmo tentando se acomodar ao mundo, mesmo carregando um buraco no peito, mesmo buscando a cumplicidade de seres parecidos com ele. O desfecho “feliz” nos leva a pensar: uma vítima de bullying consegue dar a volta por cima... ou por baixo?
15
O mundo é delas.
A Segunda Mãe, de Karin Hueck (Todavia). Já vou logo dando spoiler: o romance de estreia da paulistana trata de uma ginecocracia – um mundo utópico (ou distópico?) quase totalmente feminino. A realidade alternativa sobre a qual se alicerça o romance é descrita lá pela página 80 – mas até então nos intriga a narrativa que só enfoca mulheres, em especial um casal que tem uma filha pequena. O conflito começa quando uma das mães se ressente pela rotina doméstica e quer arranjar um emprego, enquanto a outra mãe – que também é a biológica – galga postos cada vez mais altos no governo. Mas onde estarão os homens? A premissa muito original faz deste romance um perfeito antípoda a’O Conto da Aia, de Margaret Atwood.
14
Gótico andino.
Voladoras, de Monica Ojeda (Autêntica). Não pára o boom de escritoras latino-americanas que transitam entre as várias esferas do horror e da fantasia – todas filhas da argentina Silvina Ocampo, tendo a colombiana Mariana Enríquez como madre superiora. Na tradução de Silvia Massimini Felix, a equatoriana Ojeda trata o horror entrelaçando mitos andinos com histórias que abordam a violência contra mulheres, mas seu registro lírico busca a beleza imprevista na linguagem. Contos pra ler em voz alta – cuidado pra não entrar em transe. Curioso pra ver sua mesa nesta Flip.
13
Brasil mal-assombrado.
A Febre, de Marcelo Ferroni (Cia das Letras). O editor da Alfaguara gosta de passear pela literatura de gênero, como o livro de zumbis Corpos Secos, de que é coautor, e a ficção científica As Maiores Novidades. Aqui, entrelaça o registro realista – trata da pandemia da ditadura – , sob o véu sobrenatural do tema da casa mal-assombrada. Tenso e com muitas nuances psicológicas, o livro se passa todo em uma só noite, quando dois filhos precisam cuidar do pai que tem febre e muitos esqueletos nos armários. Eletrodomésticos em revolta, odores pestilentos, presenças estranhas e diálogos inquietantes trazem arrepios – em especial quando recordamos que o Brasil nunca superou seus problemas em enterrar seus mortos.
12
Tudo misturado mas nem sempre junto.
Famílias Inter-Raciais, de Lia Vainer Schucman (Fósforo). Qual o lugar da fluidez do mestiço? Como o colorismo pauta as relações dentro de um mesmo clã, em que o mais claro pode ter mais privilégios do que o mais preto? O Brasil, país de maioria negra, é fundamentalmente pardo, mulato, mestiço, mas, dependendo do espelho, pode se refletir como branco ou preto. Um livro que tende a disparar gatilhos nos leitores, uma vez que o lar pode ser tanto o ponto de partida para enfrentar a violência racial como o lugar onde ela se consolida.
11
Perfis improváveis.
Necrópole: Memórias, de Vladislav Khodassiévitch (Jabuticaba). Com tradução de Bruno Barreto Gomide, este livro preenche lacuna importante na rala circulação da literatura russa no Brasil. Para Nabokov, que não era muito de elogiar os pares, Khodassiévitch foi o maior poeta do seu tempo (apesar do corte de cabelo à Anton Cigurh). Mas neste livro o russo exilado em Paris traz saborosos perfis em prosa de escritores que conheceu. Há os famosos (Górki e Iessiênin – aquele a quem Maiakóvski dedicou o “melhor morrer de vodka que de tédio”), e os obscuros, como a misteriosa poeta suicida Nina Petrovskáia, “que não queria desperdiçar com literatura o pouco talento de que dispunha, mas cuja personalidade influiu em circunstâncias e acontecimentos à primeira vista pouco relacionados ao seu nome”.
10
É só o fim.
Os Substitutos, de Bernardo Carvalho (Cia das Letras). Na ditadura, pai e filho viajam pela Amazônia, onde o pai, amigo dos milicos, entrega de mão-beijada a madeira para os gringos. O menino lê para o pai um romance distópico em que, depois do fim da Terra, astronautas buscam um novo lar no espaço. Mas o pai não está nem aí, claro, e busca seus lucros imediatistas – e cá estamos nos perguntando hoje, novembro de 2023, como é que Manaus foi tomada por uma tempestade de areia (e quase nenhum jornal noticiou), como é que os rios amazônicos estão secando naquele lugar antigamente chamado de “pulmão do planeta”.
9
Tristefeliz.
Ellis Island, de Georges Perec + Sal de Fruta, de Bruna Beber (Círculo de Poemas). Nesta importante coleção de poesia contemporânea, curada pela Fósforo e pela Luna Parque do casal Marília Garcia e Leonardo Gandolfi, todo mês o lançamento principal (é acompanhado por uma plaquete bem diferente. O melancólico livro do francês do OuLiPo investiga a ilha que recebeu a maior parte dos imigrantes que sonhavam em fazer a América, “o lugar por excelência do exílio, o lugar da ausência de lugar, o não lugar, o lugar nenhum”, a porta da esperança onde judeus como Perec – mas também italianos, poloneses, russos, asiáticos etc – batiam pedindo um recomeço, muitos conseguindo, mas muitos não descolavam o visto de entrada. Já a agridoce plaquete da carioca-paulistana traz divertidos poemas em prosa, híbridos de microcontos e ensaios, antiverbetes em que a frase seguinte sempre traz uma surpresa: “Maçã é tão calminha, nem parece viver em sociedade”; “Já beijei a boca de tantas mangas”; “No coral da vida, a melancia é a cantora banguela”; “A romã deveria se chamar Mirtes”; “A néspera é cunhada dos tapetes, enteada das almofadas e aprendiz de camafeu”; “Com o cajá apaziguei muitos casamentos”; “O abacaxi não é afeito a infortúnios”; “O melão irrita demais, é de Gêmeos”; “Se a vida te der limão, agradeça”; “Caju era menina e seu apelido era Juca”; “Compro caqui para estar com a família à distância”; “Figo seco é um cu em frangalhos”; “Até uma banana sozinha faz verão”; “A laranja é a síntese da fortuna: água e amarelo”; e o meu favorito, “O coco é o Cruz e Sousa das frutas”.
8
Sashimi invisível.
Kwaidan: Histórias de Fantasmas e Outros Contos Estranhos do Japão Antigo, de Lafcadio Hearn – ou Yakumo Koizumi (Fósforo). Sofia Nestrovski recolocou em circulação este autor amado por Jorge Luis Borges, um greco-irlandês que tentou ser jornalista policial e cozinheiro creole nos EUA mas foi feliz mesmo ao virar japonês. Conforme se descobre no delicioso prefácio de Nestrovski, um perfil longo que por si só já vale o livro, as histórias aqui coligidas eram contadas pela mulher de Hearn, filha de samurai, e ele as traduzia ao inglês. Presságios e fantasmagorias formam a paisagem: há o pescador que casa com uma mulher fantasma, o cantor tão bom que perde as orelhas, o pobretão que ao dormir com formigas se transforma em amigo do rei...
7
The Office com LSD.
A Entidade, de Luciana Strauss (DBA). O título se refere a uma empresa pública velha, fosca e sem graça onde trabalham funcionários de todo tipo – do chefe abusador e malvado à tia que segura a aposentadoria, da ressentida por não ter seu talento reconhecido à doida que ouve vozes vinda de uma gaveta – todos viciados não em cafezinho, mas em mate, já que argentina Strauss é outra representante do boom de latinas mágicas. Cheia de diálogos nonsense e com os pés fincados no absurdismo, a narrativa, em discurso indireto livre, não dá pistas para onde nos levar.
6
Mulher vestida só de sol.
Um Amor, de Sara Mesa (Autêntica). Uma solitária tradutora resolve viver em um povoado para se concentrar no trabalho. O tropo “dama cercada de celibatários” é abordado pela espanhola Mesa com sutileza – o calor do lugarejo encantador vai corroendo a escrita e o ritmo da vida da protagonista, que não se sente confortada pela hospitalidade interiorana; é antes acossada pela torpeza local, que agudiza seus medos. Um livro recheado de subentendidos – saber calar é uma arte.
5
Passado não passa.
Os Tempos da Fuga, de Giovana Proença (Urutau). A crítica literária paulista estreia com a saga de uma Ligia, militante que retorna do exílio em 1979, ano da anistia. Temendo pelos algozes que a fizeram fugir do Brasil, busca companheiros de clandestinidade, mas vai se esconder em uma cidadezinha do interior, enquanto divide afetos entre Carlos, Ângela e Giuliana. Em registro ora realista, ora lírico, em formato de quebra-cabeças, é um livro intrigante, que não se deixa contar facilmente.
4
Sem rumo e no alvo.
Brancura, de Jon Fosse (Fósforo). Livro bem fininho do novo Nobel. Fosse é um ateu que se tornou cristão, então talvez esta noveleta seja o seu caminho de Damasco - mas seu deus parece gelado como o inverno norueguês. Aliás não é um livro: é um atropelamento. Uma resenha não sintetiza as 60 páginas de deslumbrante estranheza desta narrativa sobre um sujeito que dirige à deriva quando se embrenha em uma floresta sombria e entrevê um fulgor resplandecente. Depois que passamos as 60 páginas perguntamos: que tiro foi esse? Um mergulho no êxtase ou no horror?
3
Filosofia do espírito.
Um Brinde aos Mortos, de Vinciane Despret (n-1). Em um ensaio fluido, curto e surpreendente, a escritora belga, professora de filosofia, sugere que os mortos deixam pistas no passado que precisam ser interpretadas pelos vivos no presente de modo a construir um futuro sem traumas. “The dead don’t die”, diria Jim Jarmusch. Despret conversa em especial com o filósofo Étienne Souriau, autor de Modos de Existência: sua tese é de que os mortos não desapareceram, mas entraram em um diferente regime de existência – a virtualidade também pode ser uma presença concreta. Com dotes de antropóloga, Despret ouve histórias de pessoas que conversam com mortos e, num lance ousado, recupera até conceitos do kardecismo para inferir que há mais brechas entre o ser e o não-ser do que sonharia o materialismo dialético. Transgênera na forma – seu texto inclui autoficção – , Despret também é autora do divertido Que Diriam os Animais? e da ficção-ensaio Autobiografia de um Polvo, ambos em diálogo com o Manifesto das Espécies Companheiras de Donna Haraway.
2
Nasci depois do não.
Coisa de Mamíferos, de João Mostazo (Editora 34) - lançamento hoje, 7 de novembro, na Livraria da Travessa de Pinheiros. Dramaturgo editor da revista Uso, Mostazo publicou alguns dos poemas do segundo livro na Morel 4. Como este.
O relógio
O que o relógio faz que é extraordinário
não é guardar o tempo: é representá-lo,
e de algum modo estranho e inexplicável,
sendo a coisa menos coisa, a menos todas as outras,
sendo a única que mostra o que as outras todas fazem,
é a coisa mais coisa, é a coisa duas vezes –
uma porque guarda o tempo naquelas engrenagens –
e tudo o que é coisa estoca
o tempo no ferro, na carne –
e outra porque solta o tempo
inteligível, no visor. A graça e o horror do relógio
não é ser diferente de tudo; é que o relógio sem mágica,
sem sonho, só vida automática,
visto por dentro mais dentro que só no seu ser de máquina,
diz, sem dizer uma palavra, que tudo, a cadeira, a caveira,
o relógio, a parede, o prego – tudo
é um relógio também,
só que cego.
1
Arte radioativa.
Siron Franco na Coleção Justo Werlang, org. Charles Cosac (Cosac Edições). O publisher da mais sofisticada editora que já existiu no país percorre toda a extensão da obra do grande artista goiano. Há uma entrevista com Franco conduzida por Ángel Calvo Ulloa, ensaio de Cauê Alves e uma entrevista com o colecionador Justo Werlang feita por Gabriel Pérez-Barreiro, que escreve: “Franco tem abordado de forma sistemática quase todas as questões dominantes na arte de hoje: catástrofe ambiental, discriminação, violência, injustiça, corrupção, raça, gênero, classe (...) mas seu trabalho não é sobre essas questões (...) Algo semelhante pode ser dito sobre seu estilo: figurativo ou abstrato? A resposta é: ambos e nenhum”. A excelência gráfica é assinada pela Ipsis - sua gráfica favorita, que produz a Morel.
Morel cujo número 10 já está no forno.
Gracias pela leitura,
Ronaldo Bressane