As coisas não precisam de você
A poesia de Laura Liuzzi e Luiza Leite, uma diatribe contra a poesia horrível, a Bolívia selvagem de Marisol Méndez e as famílias disfuncionais de Mirza Cizmic
MADRE NUESTRA
Vi essa imagem zanzando pela timeline e me apaixonei. Fui atrás e descobri Marisol Méndez, jovem fotógrafa boliviana de olhar audacioso e original, capaz de criar imagens icônicas como “Killa”, que acabou sendo uma das capas da Morel edição Outono. Dentro, imagens de seu livro MADRE conversam com uma ficção da também boliviana Magela Baudoin, “Dragões adormecidos”, d’A Composição do Sal - ambas expressões estéticas em busca do sagrado e do profano feminino no coração dos Andes. A seguir, uma conversa com Méndez.
Quem é a "Killa", a garota na capa de Morel? Como foi criar essa imagem? "Killa" é a palavra quéchua para lua. Na mitologia incaica, Mama Quilla era a deusa do casamento e do ciclo menstrual, também considerada a defensora das mulheres. Em 2019, quando criei a imagem, a Bolívia estava entre as nações com maior incidência de feminicídios na América Latina. Apesar desse panorama desanimador, cada vez mais mulheres bolivianas se levantam contra o machismo e lutam contra a misoginia. Meu objetivo ao retratar Vanessa Galindo era capturar a essência dessa rebelião feminina.
Vanessa é minha vizinha, mora com a mãe no apartamento de cima. Um dia, nos encontramos no elevador e, além de sua beleza, me cativou a força que emanava de sua doce presença. Comentei sobre meu projeto fotográfico focado em mulheres bolivianas e, alguns dias depois, nos reunimos para tomar um café. Nesse encontro, mostrei as imagens que já havia capturado e expliquei minha ideia de incorporar deidades indígenas femininas como contraponto às figuras religiosas herdadas do cristianismo e da conquista. Vanessa se sentiu identificada com a proposta e aceitou encarnar a protetora das mulheres.
Naquele dia, conversamos sobre a realidade que as mulheres vivemos na Bolívia, onde a falta de proteção estatal e a ausência de leis que nos apoiam nos obrigam a assumir a responsabilidade por nossa própria segurança. Na foto, Vanessa usa um cocar de flores feito por minha mãe e eu, junto com um véu branco. Esses elementos fazem referência à vestimenta tradicional das mulheres de Tarija durante as celebrações da Páscoa. A camisola que ela usa era da minha mãe e a arma, uma verdadeira relíquia que pertencia ao meu pai. A justaposição de elementos tradicionalmente femininos com símbolos masculinos foi uma decisão deliberada, buscando transmitir a dualidade da mulher boliviana: forte e vulnerável ao mesmo tempo.
Naquele dia, Vanessa, seu namorado, minha mãe e eu embarcamos em uma viagem às montanhas para capturar a imagem. Passamos a manhã fotografando em um ambiente natural, criando uma atmosfera que reflete a conexão da mulher com a terra e a ancestralidade. “Killa” se tornou a imagem mais popular da série, sendo catalogada por muitos como “a fotografia da noiva”.
Em MADRE há muitas visões da feminilidade na Bolívia. Como planejou conhecer as modelos e as situações das fotografias? Com MADRE, busquei um enfoque colaborativo para explorar a feminilidade de uma perspectiva mais diversa. Em vez de fotografar modelos profissionais, decidi retratar mulheres da vida cotidiana, criando um espaço para o diálogo e a reimaginação dos arquétipos femininos tradicionais.
Meu objetivo principal era estabelecer uma conexão genuína com cada mulher antes da sessão de fotos. Para isso, dedicava tempo a compartilhar minha visão do projeto, garantindo que compreendessem sua natureza e alcance. A seguir, apresentava a elas o marco conceitual que guiava meu trabalho: repensar a Virgem Maria e Maria Madalena, figuras carregadas de simbolismo religioso e cultural.
Em seguida, convidava as participantes a escolher o personagem com o qual mais se identificavam ou que lhes interessava explorar. Propunha ideias para a sessão de fotos, mas sempre com a disposição de ouvir suas sugestões e adaptar a proposta à sua visão pessoal. O diálogo era fundamental, especialmente ao trabalhar com mulheres de diferentes entornos e experiências. Acredito que os retratos mais profundos e emocionantes nascem da compreensão mútua e da conexão humana.
Dediquei tempo para conversar sobre a feminilidade, suas diferentes facetas e como se manifestam em nossas vidas. Através dessas conversas, descobri que a feminilidade não é um conceito estático ou fixo, mas uma realidade fluida e dinâmica. As participantes compartilhavam como se sentiam identificadas com ambos os arquétipos, a Virgem Maria e Maria Madalena, em diferentes momentos de suas vidas. Às vezes se sentiam puras e inocentes, e outras vezes, pecadoras ou prostitutas.
Ao iniciar MADRE, considerava a feminilidade como um espectro. No entanto, através das conversas com as participantes, aprendi sobre sua natureza multidimensional e em constante mudança. Compreendi que a feminilidade não se limita a categorias predefinidas, mas se manifesta em uma variedade infinita de expressões e experiências.
Suas imagens indicam uma perspectiva inusitada, quase surrealista. Quais são suas inspirações? Muitas imagens mostram uma visão pouco usual da Bolívia, como uma transfiguração de seus estereótipos na direção de um universo mágico, mas muito terreno… É um projeto fotográfico que explora a influência da raça e da religião sob o cânone branco e patriarcal que predomina na representação da mulher boliviana. Através de imagens do meu próprio arquivo familiar e dos retratos que compõem este projeto, as mulheres encarnam um novo arquétipo como forma de protesto contra as representações injustas que apagaram as nuances de sua própria identidade. As imagens incluem mulheres indígenas e mestiças, figuras religiosas reinterpretadas, fotografias familiares manipuladas, tradições andinas recuperadas e retratos cuidadosamente encenados. Situadas entre o documental e a ficção, as imagens descrevem uma existência composta por elementos físicos e mitológicos onde a mulher experimenta potencialidade, mutação, perda, declínio e morte. Tudo isso interpela o espectador sobre a perspectiva de seu próprio olhar, convidando-o a questionar uma herança que precisa ser atualizada.
Utilizei diversas linguagens visuais para contar a história, esperando que a mistura produzisse uma experiência semelhante à de uma jornada mística na qual o espectador é desafiado a absorver e refletir sobre as conexões entre as imagens. Afinal, a América do Sul é o continente do realismo mágico e a Bolívia o berço do barroco andino, onde a realidade se entrelaça com o mito e onde o novo e o antigo coexistem. Minha mãe foi a pedra angular da minha formação intelectual e artística. Desde pequena, ela me incutiu o amor pela literatura e pelo cinema, dois pilares fundamentais que moldaram minha maneira de ver e entender o mundo.
Cineastas como Lucrecia Martel, Agnès Varda e Yorgos Lanthimos deixaram uma marca profunda na minha prática artística. O olhar singular e poético de Martel, a sensibilidade feminista de Varda e a estética surrealista de Lanthimos me inspiraram a explorar a narrativa visual de uma forma inovadora e desafiadora. A literatura também tem sido uma fonte inesgotável de inspiração para MADRE. Autores como Roberto Bolaño e Chris Kraus, com suas obras carregadas de introspecção e questionamento social, alimentaram minha própria voz criativa. Além disso, o trabalho da historiadora boliviana Teresa Gisbert, especialmente seu livro Paraíso de los Pájaros Parlantes, me permitiu aprofundar o rico legado cultural e simbólico do meu país.
As duas capas de Morel: “Killa” por Marisol Méndez e Vladimir Safatle por Ralph Baiker (abaixo, um clique inédito de Bob Wolfenson). Garanta a sua: Morel não tem versão digital, é impressa on demand e pode ser pedida direto no site da Ipsis.
Gosta de poesia?
Meses atrás, um amigo especialmente letrado e viajado sugeriu como pauta para a Morel uma matéria com a poeta indiana Rupi Kaur.
“Não rola”, eu disse.
“Por quê?”, ele se espantou. “Li uma entrevista dela, me pareceu tão inteligente, forte, bonita.”
“Isso é verdade”, concordei. “Acontece que os poemas dela são uma merda.”
“Sério?”, chocou-se. “Mas então por que ela faz tanto sucesso?”
“O mundo é cheio de coisas que fazem sucesso e são um lixo, meu querido, você já deveria ter se acostumado com isso. A poesia dela é fraca, literal, militante, rasa, os temas são clichês, as técnicas são pueris, o léxico é pobre. Quem lê poesia sabe que ela é muito ruim. É vista como piada, porque os versos dos seus poemas são curtinhos tipo cocô de gato. Talvez seja por isso que ela faz tanto sucesso.”
“Porque seus poemas são curtinhos?”
“Não, porque lembram cocô de gato. É que quase todo leitor de poesia tem gato.”
“Eu não tenho gato. Vai ver por isso não entendo de poesia?”
“Quer ver uma coisa? Uma vez fui sacanear uma amiga que curte a Rupi Kaur. Aí mandei esse poema pra ela:
Embarquei
na tua
nau
Sem rumo.
Eu e tu.
Tu,
porque não sabias
para onde querias ir.
Eu,
porque já tomei muitos rumos.
(Rupi Kaur).
“Hum. Não entendo, mas acho uma merda. E daí?
“Ela adorou! Mas ficou curiosa, porque não conhecia o poema. Mesmo assim, elogiou o tema paradoxal, o romantismo, os atravessamentos...”
“Mas qual era a sacanagem?”
“Esse poema é do Michel Temer, meu querido.”
“Aiaiai! Eu não entendo nada de poesia...”
“Tudo bem, a Kaur e o Temer também não.”
A Invasão dos Poetas de Instagram e Seus Incríveis Poemas-Piada com Trocadilhos Óbvios e Conteúdo de Autoajuda Lapidados com Vocabulário Infantil e Emoções Acessíveis tem popularizado a chamada poesia horrível. Não me entenda mal, há poetas brilhantes que fazem relativo sucesso no Insta, divulgados em perfis como O Poema Ensina a Cair, por exemplo, e há gente que pegou o formato como desafio à técnica, como o poeta e professor Leonardo Gandolfi, grande curador e difusor da poesia portuguesa, e a plataforma também populariza poemas de autores desafiadores como Nicanor Parra e Wislawa Szymborska.
É que no Insta fica tudo junto e misturado… de repente você está meio tristonho, permeado por uma emoção tipo o mundo me deu um pé na bunda, meio que pedindo agrado, e cai um poema na sua frente que, por alguma razão, você acha mais profundo que o oceano do Djavan (ótimo letrista, sem ironia), você dá like e pimba, ensinou o algoritmo a te entregar coisas tétricas daquele poeta do chapeuzinho ou do outro dos versinhos em máquina de escrever fake. Poesia tem seus Romeros Brittos.
A popularização da poesia horrível tem como contraponto o beletrismo, talvez o grande culpado por afastar as pessoas do mel do melhor, pra usar uma expressão do Waly Salomão. A pomposidade e o falar difícil de malas sem alça que tivemos de ler na escola tipo Olavo Bilac afastou gerações de leitores dessa estranha forma de texto cercada de espaço em branco. No meio do caminho entre a poesia poperô e a poesia pampers tem milhares de poetas buscando sua atenção. Mas quem lê tanto versinho? Como educar o olhar e o ouvido? Pensava nisso quando caiu na minha mão o pequeno ensaio A Superfície dos Dias, da poeta e pesquisadora carioca Luiza Leite (uma plaquete do Círculo de Poemas, meras 30 páginas). Pra quem viu Dias Perfeitos, de Wim Wenders, e Patterson, de Jim Jarmusch, essa plaquete é meio caminho andado.
Equivale a um curso de poesia, sem nenhuma chatice. Pra começar, Leite cita um dos poemas de que mais gosto, que sempre uso para abrir minha aula Visibilidade, em meu curso de escrita criativa: o chocante “Carrinho de mão vermelho” de William Carlos Williams: “Tanta coisa depende de um/ carrinho de mão vermelho/ esmaltado de água de chuva/ ao lado das galinhas brancas”. Poema besta, né? Aparentemente uma ode irônica ao ínfimo, ao despojado, ao despretensioso, ao humilde mais simples, o poema é trespassado por uma série de singularidades.
O carrinho de mão indica um instrumento de trabalho, e o socialista Williams focava principalmente a vida dos pequenos operários. O poema de 1923, nada solene e sem rimas, com ênfase na descrição de uma cena visual, acabou por originar todo um movimento literário nos EUA, o visagismo, fundamental para o Modernismo yankee. (O nosso seria detonado pela “pedra no meio do caminho de Drummond”, em 1928.) Foi importante também para cristalizar o processo de criação de um gigante como João Cabral de Melo Neto. E é nessa batida, a da poesia das coisas, que vai o delicioso livro de Luiza Leite. Sem afetação, o ensaio enfileira Williams, Laurie Anderson, Laura Wittner, Frank O’Hara, Tamara Kamenszain, Cecília Pavón, Raymond Carver, Cézanne, Cortázar, Kazuo Ohno, os koan zen... e só conto metade do name dropping.
A tese de Leite, cara a poetas como Cabral, é que, falando das coisas, falamos de nós. A busca pelo minimal, pelo visual, tátil, concreto, seria uma maneira de combater as abstrações generalizantes, vagas e insossas, além do ego próprio ao poeta, para deixar-se ser invadido e lido pelo mundo. Poemas próximos da fotografia de um Cartier Bresson, que busca capturar o instante, mas com uma dicção próxima à prosa, quase narrando uma história: o “poema como modo de perceber”, na expressão de Leite.
“Em vez de produzir um conhecimento abstrato que se pretende universal, o poema repara na especificidade do que acontece em volta (...) Por mais sutil que seja, há sempre algo à espera da nossa atenção. A percepção é uma prática, produz um saber situado, construído na vizinhança das coisas (...) Perceber a singularidade das coisa, e também dos seres e dos fenômenos, é também deixar-se afetar (...) Assumir outros pontos de vista é uma capacidade xamânica, e também poética.”
E então Leite nos leva um outro belo livro lançado também pela Círculo de Poemas, Poema do Desaparecimento, de Laura Liuzzi, ao notar que este procedimento humilde de buscar a superfície das coisas faz com que “as fronteiras que separam sujeito e coisa colapsem e a poeta se transforme, ainda que momentaneamente, no que está diante dela”:
se percebo uma maçã
esta maçã me constitui:
o cabo levemente envergado
a pele vermelha cheia de sardas
sou eu a maça agora que ela
entrou no meu mundo sou eu
vermelha arredondada pintada
é meu o seu interior amarelado
o suco que solta da carne esponjosa
as pequenas sementes escondidas
em suas costelas sou eu
a mesma que decide pegar
com as mãos a maçã
e sem descascá-la, feri-la
com os dentes, ferir-me
com os dentes e sentir
na língua sua carne
meu suco o som
de seu desaparecimento
a nossa frágil eternidade.
O livro todo, 79 páginas, é constituído de um longo poema ensaístico, fragmentado em pequenas células de menos de uma página – muitos deles terminando com a declinação do verbo “desaparecer”, quase um refrão. Se, como propõe Leite em seu ensaio, o poeta volta-se aos objetos exteriores para projetar neles suas emoções e fantasias, no poema de Liuzzi o eu-poético se dissolve nas coisas de fora, angustiado com a efemeridade da própria existência; as coisas são eternas, os humanos não. O ponto de fuga dessa poesia é a ausência do eu-lírico. “As coisas não precisam de você:/ Quem disse que eu tinha que precisar?/ As luzes brilham no Vidigal/ E não precisam de você;/ Os Dois Irmãos/ Também não”, cantou Marina o poema de Antonio Cícero.
“Sobre a cabeça sempre o mesmo/ conjunto de estrelas acesas no céu/ .../ algumas já desapareceram/ e estão mortas mas mesmo assim/ lá estão elas – cotidianamente/ .../ as estrelas sou eu/ então talvez eu já esteja/ eternamente desaparecida/ embora para os meus pares/ não pareça”.
A poesia de Liuzzi tem mesmo algo de crepuscular: quando os temas vão ficando nítidos, pluft. A melancolia é tinta com humor, porém, em associações de imagens concretas e às vezes inusitadas: “toda saudade é particular/ mas sou tudo aquilo/ que me falta:/ avó avião avestruz./ .../ para que saber para/ onde foram? é simples:/ tudo o que existe/ desaparece”.
Pra não dizer que curti tudo, me incomoda um pouquinho aqui e ali um aceno à metapoesia, ao poema que fala do poema - aliás uma marca que me irrita na poesia contemporânea. Como em “meu poema não se importa se desapareço/ o poema pode ser escrito por você/ a partir desse ponto o poema é/ uma fenda aberta na paisagem”. De fato: se é verdade que os poemas não se importam conosco, muitos humanos também não se importam com poemas que se importam demais com a própria poesia.
É o tipo de tema, penso, que acaba por afastar quem não conhece poesia. Falar de poesia dentro da poesia pra mim equivale a falar de sexo enquanto se está transando - dá pra desligar o narrador off, Zé Padilha? Perdoai a implicância, poetas, mas falar de poesia dentro da poesia é… chato. E o pior dos vícios estéticos é a chatice. Às vezes o leitor só quer ler um poema sobre outra coisa que não seja o poeta ou o poema ou a poesia em si - esse tipo de tópico o distancia do mundo real, onde está você, leitor/a. Sei que “a procura do poema”, para usar uma expressão drummondiana, é um tropo desde os gregos, ou desde os africanos talvez, um tema que obceca os poetas, mas particularmente não é das coisas que me fazem sair de casa, ou sair da casinha.
“Vamos lá ver aquele poeta que fala poemas a respeito de poemas?” Thanks but no thanks. Vou preferir pela enésima vez escutar Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, cuja somatória de letras forma a obra poética brasileira com maior densidade e variedade de técnicas e expressões estéticas concentradas na menor quantidade de espaço lírico dos últimos trinta anos - o que para mim atende à definição de Ezra Pound, “grande poesia é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. (Tarso de Melo, poeta e curador da Círculo de Poemas, já concordou comigo que Mano Brown é de longe o maior poeta da nossa geração).
Voltando ao livro de Liuzzi, que felizmente não fala só de poesia, e sim oferece mais espaço à carnadura concreta do mundo real, coisas de verdade, como uma conversa com a também poeta Julia de Souza, um comentário a Karl Ove Knäusgard, a cosmovisão de Ailton Krenak, um verso de Chika Sagawa, o Dia do Fogo na Amazônia, florestas siberianas, o cianureto das maçãs, o sumo de muitas outras frutas: o grande mérito deste livro é, materialmente, expor a angústia que a todos nos conecta, a vontade de agarrar o mundo antes que desapareça, criando na mente do leitor imagens raras, surpreendentes, inesquecíveis - como esta que encerra o livro:
olha aqui, presta muita atenção
você não pode se acostumar
com a vida ela é estranha
sempre uma deformação
dela mesma um desvio
uma unha que deixou
de nascer um leão
que perdeu a voz
uma repetição
que decidiu
ser outra
coisa
olha lá, presta atenção
é um rinoceronte
de patins
olha lá
cadê
desapareceu.
Famílias terrivelmente felizes
Também garimpei o artista bósnio-finlandês Mirza Cizmic via Instagram (meu algoritmo apanha bastante, é uma luta pra entregar o conteúdo que eu quero). Sua obra perturbadora e ao mesmo tempo divertida abre e fecha a Morel de Outono, nas guardas das capas e nas imagens que ilustram todo o corpo de ficções da revista. Troquei uma ideia com ele:
Seu trabalho geralmente se concentra em famílias disfuncionais ou não convencionais, quase sempre em espaços fechados. Há uma atmosfera de perigo, medo, humor negro - e o choque entre o estranho e o familiar que lembra o termo freudiano "Unheimlich". Como você analisa seu trabalho? Construo comentários visuais que falam pela condição humana em diferentes circunstâncias, representando e retratando o mundo ao meu redor no contexto cultural e histórico. Meu trabalho frequentemente apresenta "paisagens domésticas" oníricas e atmosféricas, figuras e cenas que misturam elementos da realidade, nostalgia, imaginação e isolamento. As pinturas são caracterizadas por cenas intensas e emocionais, muitas vezes apresentando figuras em situações ambíguas ou psicologicamente carregadas.
Você mistura pessoas “normais” com figuras pop como Batman e Teletubbies. Por que essa obsessão? O conceito de existência humana é fundamental para nossa compreensão da realidade e do ser. Batman, Superman, Teletubbies não são apenas figuras da cultura pop, eles são meus heróis. Eles representam algo mais, algo utópico, mesmo que tenham seu lado negro. Freud disse uma vez algo como "a infância é o verdadeiro pai da criança". Minha infância foi violada em grande escala; meu direito de ser protegido da violência, abuso e negligência, de viver com dignidade e ser apoiado para desenvolver meu potencial total. Para se proteger, às vezes você tem que usar uma máscara. Cresci em um ambiente perigoso e sem muita proteção, poderia ter seguido muitos caminhos errados. Luto constantemente com meu passado; é uma luta sem fim sem vencedores. Essa é uma das razões pelas quais pinto meus super-heróis favoritos. Talvez em algum lugar no fundo da minha alma eu precise ser salvo ou já tenha sido salvo.
Você vê seu trabalho ao lado de quais artistas contemporâneos? Há tantos artistas excelentes, mas alguns dos meus favoritos são Eric Fischl, Noah Davis, Marlene Dumas, Mamma Karin Andersson, Leon Golub e Petri Hytonen.
Seu Instagram indica que você é muito prolífico. Quanto tempo leva para pintar uma obra? Pintar para mim tem muito a ver com o conteúdo. A coisa mais difícil para mim sempre foi o que pintar e por quê. Ao mesmo tempo, é uma atividade muito íntima e pessoal. Tudo depende do conceito da pintura. Às vezes leva algumas semanas, às vezes leva dois dias…
Veja mais do incrível trabalho de Mirza Cizmic aqui.
Gracias pela leitura,
abraços,
Ronaldo Bressane