Chegou a Morel 14, edição de verão
Mais: sugestões de livros para as férias & uma nova oficina de escrita
Um pouco de droga, um pouco de salada
Este meme paradoxal sintetiza o zeitgeist dos loucos anos 20. Tentamos manter o corpinho em dia ao mesmo tempo em que o detonamos com voracidade. Ou será que sempre fomos assim? Um pé ao mar, o outro à terra? Um olho nas estrelas, outro no abismo? Se avizinha mais um verão bipolar, em que giraremos alegremente no forno do desastre climático, feito frangos de padaria, bronzeados porém sem cabeça.
Então, bailemos, pediriam as geniais irmãs cariocas Mariana e Natasha Jascalevich, tão talentosas que ocupam circo, palco, TV, cinema e o que vier pela frente, no ensaio ensolarado clicado por Autumn Sonnichsen. “Não adianta chorar, nem fazer beicinho, o calor infernal chegou”, avisa a crônica de Gregório Duvivier. Bom lembrar: Morel só publica literatura contemporânea inédita.
O jeito é abraçar o paradoxo, o nonsense, o assimétrico e o capeta, como nas imagens da fotógrafa Isabel Santana Terron – em que, como sugere seu comparsa Joca Reiners, “a ordem do mundo está a um segundo de se desordenar”. De olho nas tendências visuais, o verão de Morel espia os corpos sagrados de Gustavo Nazareno, um pintor renascentista afrobarroco, e os seres mitológicos de Bruno Novelli, de traços indígenas, luxuriantes e psicodélicos. Na ficção, a edição 14 conta as agruras de um cão neurótico, no desenho perspicaz de Caco Galhardo, e de um cão adotado por uma neurótica, no engraçado conto de Ega Real.
Neste número, as narrativas são um itinerário de espantos: seja nas obras eternas do museu de romances breves, no cartum de Hell Ravani, seja em uma prosaica ida à padaria, como no texto de Carol Rodrigues, seja na treta conjugal à beira do caos de Vinicius Portella, seja nos relatos comoventes de uma guerra perdida, editados com lirismo e rigor por Beatriz Bracher. Por falar em lirismo, nesta edição batemos o recorde de poetas, com as línguas de Angélica Freitas, os assombros de Prisca Agustoni, os escombros de Natasha Felix, os alfabetos de Diogo Cardoso e as estrelas de Vasco Gato.
Entre amor e ódio, o Quiz traz as leituras que fizeram as cabeças de nossos colaboradores em 2024. Ano que acaba tristemente com a eleição de Trump, psicanalisada por Bruna Kalil Othero e radiografada por nosso diretor de arte Eduardo Kerges. Mas um ano que começou memorável, com a eleição de Ailton Krenak à ABL, no flagra de Ale Ruaro. Um time e tanto, hein?
Enfim, que 2025 comece assim: com o sol menos te fritando – e mais te iluminando. Todo o conteúdo aí em cima pode ser apreciado na nossa edição de verão. Morel é impressa sob demanda em papéis especiais pela Ipsis, mais premiada gráfica do país. A tiragem é limitada e não existe versão virtual. Porque do papel viemos e ao papel voltaremos. Peça a sua clicando direto aqui.
Submarino Turbo: turma nova em 2025
Inscrições abertas: em 20 de janeiro abro nova turma da minha lendária oficina de escrita criativa. É sua chance de participar do Submarino, curso de ficções breves navegando desde 2006. Desta vez em novo formato, em três módulos independentes e interligados.
No primeiro módulo, Contos Para o Próximo Milênio, vamos mergulhar em técnicas de criação de cenas, de microconto, de conto na segunda pessoa, de conto em vários pontos de vista.
No segundo módulo, Conficção, a partir de 17 de fevereiro, batucaremos as escritas de si, na primeira pessoa. Crônica, ensaio, diário e texto memorialista são alguns gêneros abordados.
O terceiro módulo, Preliminares, a partir de 17 de março, usa a tensão sexual como estruturante da tensão narrativa. Vamos ler e escrever ficções curtas que dialogam com o desejo, o erótico, o íntimo e o explícito.
Neste curso de formação em três atos, proponho brincar com várias técnicas da ficção breve, e também ler e analisar textos de um amplo espectro de autores modernos, cujos textos usaremos como inspiração para escrever. De Italo Calvino a Anne Carson, de Hilda Hilst a Roberto Bolaño, de Djaimilia Pereira de Almeida a Emmanuel Carrère, de Dalton Trevisan a Susan Sontag, de Ryonosuke Akutagawa a Franz Kafka, de Miranda July a Anton Tchecov.
São 12 encontros online. A partir da aula 2, leremos e comentaremos os textos produzidos pelos frequentadores a partir das propostas dadas em aula. Sempre às segundas, via Google Meet, entre 19h30 e 22h30, aulas registradas em vídeo e em site. Cada módulo é oferecido por $500. E o curso todo pode ser adquirido em parcela única por $1200. Vagas limitadas! Inscrições: ronaldobressane@gmail.com.
Vamos?
Último #pilhadeleiturasperdidas de 2024
Dicas rápidas mas nada rasteiras
10
Stay True, de Hua Hsu, trad. Rodrigo Neves, WMF Martins Fontes
“Naquela época, nenhum de nós reclamaria se passássemos tempo demais no carro. Teríamos ido a qualquer lugar dirigindo desde que estivéssemos juntos.”
Promissor, hein? O californiano Hua Hsu narra a história de sua amizade com o nipônico Ken, que, ao contrário do descolado taiwanês colaborador da New Yorker, gosta de coisas medianas tipo Dave Mathews Band. Antípodas nos gostos, os descendentes de orientais, porém, irmanam-se no amor a viagens de carro e na sensação de não pertencerem tanto aos EUA quanto gostariam. Até que: uma tragédia.
9
O Observador no Escritório, Carlos Drummond de Andrade, Record
“Abril, 13. Baixado Ato Institucional, que atenta rudemente contra o sistema democrático. O Congresso, já tão inexpressivo, passa a ser uma pobre coisa tutelada. Vamos ver o que será das liberdades públicas.”
Editado pela primeira vez em 1985, este volume compila entradas no diário entre 1943 e 1977. Dado que sua vida teve raros sobressaltos, o livro ilumina as leituras do maior poeta brasileiro bem como suas posições políticas em período crucial do país - do Estado Novo à distensão da ditadura, passando pelo suicídio de Getúlio ao AI-5. É um volume crucial para toda biblioteca que se preze.
8
As Formas do Mar: Poesia Chinesa Contemporânea, Jabuticaba
“Uma amiga com voz de criança leva você
Para almoçar numa cantina cheia de meninas com voz de criança
Na televisão a apresentadora com voz de criança
Transmite homicídios e passatempos com voz de criança”
Conhecemos tão pouco a literatura chinesa que esta antologia em si já é um acontecimento. Organizado pelo valente Marcelo Lotufo, homem-jabuticaba, ao lado de Hu Xudong (autor do poema acima, o professor viveu no Brasil), com tradução de Inez Zhou e Dora Ribeiro, o livro bilíngue é um marco. São 52 poemas escritos por 2 poetas mulheres e 8 homens, nascidos entre 1968 e 1991, em metros e rimas e temas tão belos e imprevisíveis quanto a melhor arquitetura oriental.
7
A Grande Porção de Lixo do Pacífico, Vinicius Portella, DBA
“A Grande Ilha de Lixo do Pacífico é um vórtice de resíduos plásticos com alguns milhões de quilômetros quadrados de extensão que fica boiando ali mais ou menos entre a Califórnia e o Havaí há algumas décadas. É observada desde 1988, catalogada desde 1997, mas ficou famosa mesmo só em 2008 (…), deve ter hoje mais ou menos três vezes o tamanho do território da França.”
Um dos destaques da nova cena literária brasiliense, de gente como Paulliny Tort, Dan e Breno Kümmel, entre outros, Portella é uma das mais criativas vozes do gênero conto, desde que despontou com O Inconsciente Corporativo. Como sugere o trecho acima, seu foco são as mudanças drásticas por que vem passando o planeta - tão bizarras e trágicas que ao mesmo tempo nos fazem olhar para um absurdo como esse Gramacho marítimo como se fosse algo normal. Se não levar prêmio, desconfie dos júris dos prêmios (bem, desconfie sempre).
6
Meu Corpo, Minhas Pregas: Um Ensaio Proctográfico, de Fabio Lopez, BebelBooks
“Bom dia, como vai o CU? E é como se essa singela demonstração social de educação e simpatia causasse o efeito de uma lambida na nuca, um comichão no finzinho da espinha, um ataque picante de cócegas imorais, ultrajantes e gostosinhas. Loucura, sacrilégio, pânico e gritaria: meu cu está melhor AGORA, e o seu?”
Criador do logo das Olimpíadas 2006, o carioca Lopez sentou forte em sua obsessão anal e pariu uma obra original: um saboroso livrinho fescenino crivado de pictogramas reproduzindo formas mui variadas do brioco que humildemente nos une a todos. É o tipo de mimo perfeito pra dar de presente (que porém não se pede, se conquista), deixar em cima da mesa de centro, ou talvez à cabeceira. Inspirador.
5
A Segunda Vinda de Hilda Bustamante, de Salomé Esper, trad. Sergio Karam, Autêntica
“Hilda acordou com a boca cheia de vermes, a estranheza daqueles corpos moles mexendo-se entre seus dentes. Quis se sentar com uma fúria muito parecida com o nojo, mas bateu a cabeça em algo. Cuspiu. Cuspiu rápido, sentia-se confusa, até perceber a boca voltaria a ficar vazia. Estava escuro, não enxergava nada, teria caído da cama e rolado pelo chão no meio da noite? Teria esquecido de como se dorme depois dos setenta e nove anos? De onde saíram os vermes?”
Depois de uma abertura como esta, como parar a leitura? Melhor seguir em frente para acompanhar a nova vida de dona Hilda, 79 anos morta, zero anos depois de ressuscitar, com fôlego de recém-nascida, em busca do amor que a vida lhe negou. Se você como eu se sentiu órfão de um bom exemplar de realismo mágico depois de assistir à maravilhosa primeira parte da adaptação de Cem Anos de Solidão na Netflix (vai por mim, é uma obra-prima do audiovisual, García Márquez veria amarradão), este romance curtinho e divertido da argentina Esper é a solução.
4
De Quatro, de Miranda July, trad. Bruna Beber, Amarcord
“Atletas se exercitam, poetas e profetas podem viver à deriva.”
A primeira tentação é escrever "este é um livro sobre a menopausa", mas esse é o jeito burro de abordar qualquer livro. Um romance de ficção, assim como um poema, não "é sobre" nada, já é a própria coisa. A não ser, claro, que seja muito ruim, como a maioria dos livros que vemos por aí, com suas mensagens literais. Essa idiotice moderna de digitar "é sobre isso" lembra a frase apócrifa (atribuída a Frank Zappa) "escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura". Shut up and play the guitar.
Dito isso, a forma do romance expressa o seu conteúdo, se movendo sem sair do lugar, inconstante, instável e anticlimático. A narradora pode ser a própria Miranda July, mas não é nomeada, o que lhe dá liberdade pra inventar situações insólitas e escapar dos chavões da autoficção, ao mesmo tempo em que não perde a distância íntima do pacto autobiográfico. Antes de fazer 46, essa artista burguesa quase famosa, casada e mãe de uma criança não-binária, vivendo uma vidinha perfeita em Los Angeles, resolve ir pra Nova York de carro. Em vez disso, ela para numa cidadezinha perto de LA, onde aluga um quarto num hotel. Sem querer estragar as surpresas do enredo - que estraga nossas expectativas o tempo todo -, dali pra frente vemos essa mulher bissexual tendo experiências inusitadas circulando os temas da perimenopausa, sexualidade, não-monogamia, gravidez, parentalidade, etarismo, identidade, coragem em abraçar as próprias contradições e medo da morte.
"Mulheres são seres que vazam e desconhecem suas fronteiras", diz Anne Carson em Sobre Aquilo Em Que Eu Mais Penso - o que poderia ser o lema de July: está sempre vazando (lágrimas, sangue, fluidos diversos), desbravando os limites de sua libido para se provar viva e íntegra. Uma bela jornada que, embora (ou talvez justamente por causa disso) tenha temas específicos da feminilidade, é uma jornada tão universal quanto Ulisses voltando pra casa. Indo para a antologia de grandes cenas malucas inventadas por July - como a transa bizarra de seu filme Eu Você e Todo Mundo -, um homem põe um absorvente "em si mesmo". A tradução da Bruna Beber é a cereja do bolo, tem até "quadradinho de oito"...
3
Pixo Zumbi, de Caeto, WMF Martins Fontes
“O cara imbatível no Brasil nessa coisa de fazer quadrinho autobiográfico” (Allan Sieber, no prefácio)
De fato: pela qualidade e originalidade no traço e pelas altíssimas doses de sincericídio, Memória de Elefante, de Caeto, é um marco indiscutível da arte serial brasileira. Neste novo volume em seu agressivo preto-e-branco, o quadrinista paulista promove uma cruza inovadora de gêneros ao aproximar uma autoficção fake ao gênero de zumbi. Gentalha como Bolsonaro, Zambelli, Malafaia e outros bichos escrotos viram mortos-vivos assustadores numa SP distópica. E quem virá nos salvar? O quadrinista Juliano (bem parecido com certo desenhista…) e seu inimigo Leo, pixador que roubou a ex-namorada de Juliano. As cenas de sexo são espetaculares.
2
A Peste: Viver A Morte em Nosso Tempo, de Jacqueline Rose, trad. Flavia Costa Neves Machado, Fósforo
“Este livro foi escrito no calor e no calafrio da hora.”
Quanto vale uma vida? Eis a questão que a pandemia nos lançou. A mortandade aleatória, acrescida às fatalidades em guerras e genocídios ao redor do mundo, é o tema desta coleção de ensaios da psicanalista inglesa, que aproxima Simone Weil de Freud por intermédio, claro, de Albert Camus. Um livro luminoso e urgente.
1
Nem Mesmo os Mortos, de Juan Gómez Bárcena, trad. Silvia Massimini Felix, DBA
“Se lhe perguntam se é casado, ele responde que sim e depois vai fazer outra coisa: limpar as tigelas, varrer a taberna, virar o peru que está sendo assado no espeto, esperando que não lhe perguntem se talvez sua mulher não é aquela índia que se ajoelha para esfregar o chão. Juan não faz perguntas e não responde a perguntas, ou o faz com o mínimo de palavras possível. Isso significa que ele está, de alguma forma, sempre sozinho. Portanto, esta noite em que ele bebe sozinho, esta noite em que se senta sozinho no meio da taberna vazia, não é uma noite mais solitária do que qualquer outra noite nos últimos cinco anos.”
Livraço. Em quase 500 páginas, o prodígio espanhol Bárcena narra a aventura de um velho garimpeiro hispano, taberneiro no México, que recebe a estranha missão de caçar um xamã indígena obscuro que como ele também se chama Juan. Do século 16 ao 21, um épico alucinante, com ecos de McCarthy e Conrad. Honestamente ainda nem o terminei; mas já posso cravar que vai ser o último grande livro lido este ano. Com licença, preciso voltar à minha pilha ;)
Boas festas e feliz 2025!
Abraços,
Ronaldo Bressane
Não tem como não se sentir influenciado por essas sugestões de leituras! Já tô empolgado para incluir várias delas na listinha do ano que vem! Bom final de ano, Ronaldo!