Começou o Ano da Serpente
100% veneno: o que é uma experiência se não for compartilhada?
Quanto tempo dura o efeito de uma picada?
Começou o Ano da Serpente. O mais fascinante, simples e imprevisível dos animais. Lembro da história daquele hipster que tinha no quarto uma píton muito fofa, alimentada a pão de ló e leite com pêra. Um dia a mãe tem saudade do filho já adulto que ainda vive com ela mas quase nunca sai de casa e abre a porta do quarto pra uma espiadinha. O filhote deitado na cama, de lado, a mão fazendo as vezes de travesseiro, a outra acariciando o ofídio de resplandecentes escamas. Jovem e cobra estendidos nos lençóis, estáticos em mútuo fascínio, ambos do mesmo tamanho. O corpo da píton, coberto por um padrão intrincado de linhas sinuosas e manchas irregulares em tons de dourado, marrom, preto e cinza – exatamente igual ao padrão do agasalho esportivo que o filho não tira nunca. A víbora o mira nos olhos, ele devolve, ela treme a linguinha bífida, encantada, ele sorri leve. A mãe se enternece no amor do filho pela fera, da fera pelo filho. Quanta pureza no encontro interespécies. Dia seguinte a mãe estranha o filho nem descer pra jantar. Abre a porta do quarto pra uma espiadinha, ele havia deixado a luz acesa e a mãe acha difícil discernir figuras. O filho todo entrelaçado pela píton, da garganta ao ventre. Parece tão menor, assim abraçadinho, ela lembrou-se de quando era um pacote envolto num cobertor. Mas não é um gorro na cabeça do filho, é a boca da píton plena e arreganhada em seu trabalho de fome. Quando a serpente se estica ao lado da presa, deitadinha ao seu lado, não está fazendo nada menos que medir seu tamanho pra saber se já é capaz de engolir você.
Começou o Ano da Serpente Yin. A serpente simboliza sabedoria, estratégia e intuição, promovendo um período de introspecção e busca por conhecimento. O ano exige cautela. Entre os perigos e preocupações, destacam-se a imprevisibilidade (mudanças inesperadas e situações difíceis de prever), decisões impulsivas (ações repentinas, conflitos interpessoais, tendência a mal-entendidos e desconfiança nos relacionamentos), tensão emocional (emoções intensas e períodos de instabilidade), manipulação (pessoas agindo de forma estratégica, escondendo intenções verdadeiras), risco de isolamento (desejo por introspecção leva ao afastamento social), obstáculos à comunicação (problemas em transmitir ou interpretar mensagens), mudanças abruptas (transformações inesperadas geram insegurança).
Começou o Ano da Serpente. O veneno está correndo solto. Casos de envenenamento chocam o Brasil: um baião-de-dois no Piauí; um bolo de chocolate em Torres; mensagens e traições que ressurgem depois de décadas. O caso piauiense ainda não foi solucionado. Mas a polícia já enquadrou a gaúcha que envenenou a família com arsênio. Parente é serpente, meu caro Mario Monicelli. E um ressentimento é o trabalho da morte não bem realizado, diria, toscamente citando o Freud de Luto e Melancolia. Por causa de 400 dinheiros não devolvidos pela sogra, a nora ressentida matou a família inteira.
Ressentir é voltar obsessivamente ao local do crime em um infinito “esprit d’escalier”, como sussurram os franceses: dar a resposta esperta quando já é tarde demais. Depois de uma ofensa, assim que você desce a escada lhe vêm à boca as palavras que deveria ter dito mas na hora não conseguiu. O espírito de escada faz com que você jamais escape da cena do crime, reencene o crime infinitamente na imaginação. A identidade da vítima se torna aquele trauma, a identidade do agressor se torna a sua ofensa: não há perdão nem esquecimento para o agressor, a vingança será encenada até o fim dos tempos. Só que o ressentimento também não passa de um trauma – um trauma autoinfligido. Já disse o Bardo que ressentimento é como tomar veneno e esperar que morra a pessoa que o ofendeu.
Começou o Ano da Serpente. A vingança adiada é a fantasia central que sustenta o ressentimento, dizia Nietzsche, lembrado por Maria Rita Kehl em Ressentimento (Boitempo), livro indispensável para compreender a nossa época que divide o mundo binariamente em vítimas e algozes – uma época em que vítimas acumulam capital simbólico como moedas no cofrinho. Sim, pode até acabar o ressentimento, mas não acaba o capitalismo.
“O ressentido conserva a crença em sua integridade à custa de eleger inimigos (...) Nisso consiste a ‘moral negativa’ do ressentimento. ‘O fraco só consegue se afirmar negando aquele ao qual não consegue se igualar’”, cito Kehl, citando Nietzsche em Genealogia da Moral. “O ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer. Vive em função de sua vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo (...) A fenomenologia do ressentimento assemelha-se à da melancolia (...) O ressentido acusa, mas não está seriamente interessado em ser ressarcido do agravo que sofreu (...) No ressentimento, a dívida permanece impagável: a compensação reivindicada é da ordem de uma vingança projetada no futuro”, Kehl escreve.
A compensação reivindicada é o capital simbólico da vítima agredida. Um capital simbólico que, dentro da economia dos afetos, pode ser monetizado e transformado em mercadoria e reembalado em livros, podcasts, reels e posts. Todo trauma pode ser monetizado? Como definiria Shakespeare: “tomar veneno e esperar que o outro morra”. Um prato que se come frio. Mas que alimenta contas bancárias.
Começou o Ano da Serpente. Tome muito cuidado com quem você se deita: a extensão do afeto do outro pode ser somente a extensão da medida de sua fome – e de sua vontade de te engolir. Como no conto “À deriva”, clássico de Horacio Quiroga, o veneno da serpente demora muito tempo até se espalhar pelo corpo do sujeito envenenado – até que ele mesmo não consiga mais discernir fato e ficção, imaginado e real. A depender da dose, assim como um veneno pode ser administrado como remédio, um remédio também pode acabar virando veneno. Aquele hipster da história lá de cima não teve tempo de descobrir, mas também existem casos em que uma serpente, confusa, engole a própria cauda. Então...
Relaxa
Coisas ruins vão acontecer.
Teus tomates vão criar um fungo
e teu gato vai ser atropelado.
Alguém vai esquecer o sorvete
derretendo no carro e jogar
teu suéter azul de cashmere na secadora.
Teu marido vai pegar
uma garota da idade da tua filha, os peitos pulando
pra fora da camiseta. Ou tua esposa
vai lembrar que é lésbica
e te largar pela vizinha. O outro gato —
aquele que você nunca curtiu de verdade — vai pegar uma doença
que exige que você abra à força a boca febril dele
a cada quatro horas. Teus pais vão morrer.
Não importa quantas vitaminas você tome,
quanto Pilates faça, você vai perder tuas chaves,
teu cabelo, tua memória. Se tua filha
não meter o coração
em toda tomada elétrica que encontrar,
você vai voltar pra casa e descobrir que teu filho esvaziou
a geladeira, a empurrou pra calçada
e ligou pro Universo dos Usados vir buscá-la — grana pro crack.Existe uma história budista de uma mulher perseguida por um tigre.
Quando ela chega a um penhasco, agarra um cipó resistente
e vai descendo até a metade. Só que lá embaixo tem outro tigre.
E dois ratos — um branco, um preto — vêm correndo
e começam a roer o cipó. É quando
ela saca um morango selvagem brotando de uma fenda.
Ela olha pra cima, pra baixo, pros ratos.
Então come o morango.Aqui está a vista, a brisa, a pulsação
na tua garganta. Tua carteira vai ser roubada, você vai engordar,
escorregar nos azulejos do banheiro de um hotel estrangeiro
e quebrar o quadril. Vai se sentir sozinho.
Ah, prova quão doce e ácido
é o suco vermelho, como as sementinhas
estalam entre os teus dentes.(Ellen Bass, trad. RB)
“Relaxa” foi tirado do livro Like a Beggar. Nunca tinha ouvido falar na laureada Ellen Bass até este lindo poema pular no meu Insta lido por um monge budista. Instagram is a bitch: se você bate direito no algoritmo, com paciência e método, de vez em quando ele te entrega tesouros incríveis – como estes versos, que caíram na minha mente bem no meio do recente shitstorm causado por uma história que ressurgiu do passado. Nada como ter uma perspectiva diferente do abismo, caro Nietzsche. Procure os poemas de Ellen Bass. Ela escreveu sobre mulheres que foram abusadas quando crianças, acaba de lançar o livro Indigo e criou várias oficinas de escrita em penitenciárias da Califórnia, onde vive.
#pilhadeleiturasperdidas
O que é uma experiência se não for compartilhada?
Copiando a excelente news da amiga Ana Lima Cecilio, vou puxar pra cá não só lançamentos de agora como também de outras épocas. Pra que ficar refém da indústria editorial, não é? Começo comentando um filme inspirado na obra de um dos meus favoritos: William S. Burroughs.
Queer, de Luca Guadagnino, como seus anteriores Call Me By Your Name e Rivals, investiga nuances e contradições da masculinidade, com foco no homoerotismo. Achei muito sagaz a escolha de Daniel Craig como William Lee, o alter ego de Burroughs. (Antigamente, quando a autoficção ainda não era essa modinha insuportável em que você acompanha um sujeito lavando pratos e resmungando durante cinquenta páginas, um escritor criava um personagem quase idêntico a ele mesmo, jogava umas mentiras em cima e dava outro nome, ou nome nenhum; geral identificava e sabia que não passava do tal escritor, mas a gente comentava “é seu alter ego” e ficava tudo bem, sem escândalos.)
Na cabeça de todo mundo Craig sempre vai ser o James Bond, não só pelos cinco filmes que viveu na pele do personagem de Ian Fleming mas também porque sua performance muscular supera em potência as atuações de Sean Connery e Roger Moore, os melhores 007 anteriores (e os filmes de Craig têm roteiros bem mais sofisticados). Então estranhei a bicha alta, esquálida e esquisita que foi o beatnik virar aquele 1,78m de pura fibra dourada – até porque eu lia os dois, Fleming e Burroughs, na mesma época, lá pelos 18, e este é um amálgama estranho à primeira vista.
Bond é a coisa mais próxima de um super-homem mortal já criada pela literatura: um detetive forte, implacável, de ética rigorosa e ainda por cima cerebral e sedutor. Um heterotop que não é redpill, pois aprecia as mulheres e é por elas apreciado (ao contrário de qualquer incel). Já William Lee é um homem obcecado por novinhos (muitos, menores de idade, como os que pegava no México e no Marrocos), que se vê como um agente secreto, usa o corpo como campo de provas para todo o tipo de substância psicoativa enquanto elabora teorias estapafúrdias sobre a realidade, tendo em vista seu vasto repertório e domínio da linguagem. Não deixa de ser outro tipo de super-homem.
Guadagnino sacou as similaridades entre ambos os personagens e, chamou Craig, porque no cinema atual o casting é tudo (Dennis Quaid, trumpista e machista declarado, não está perfeito em A Substância? Os gente-fina Selton Mello e Fernanda Torres não são os pais que todos queremos?). Além das similaridades acima, há uma específica, que os define: Bond e Burroughs são loucos por armas. Ambos têm licença para matar. Bond, a serviço do império inglês (ou do capitalismo). E Burroughs, notório apreciador de pistolas, revólveres e fuzis, os quais portava ostensivamente, matou de fato a mulher, Joan Vollmer.
Este evento não aparece no manuscrito original de Queer (trad. Christian Schwartz, Cia das Letras), produzido nos anos 1950, mas no posfácio ao livro, publicado somente em 1985. Com Junky (trad. Reinaldo Moraes, Brasiliense) e Almoço Nu (trad. Daniel Pellizzari, Cia das Letras), formam a trilogia iniciática de Burroughs (acrescente-se a este período ainda as Cartas do Yage, trocadas com Allen Ginsberg, sobre a experiência com ayahuasca na Colômbia). Mas seria só falta de coragem de outros editores que deixou este livro inédito por três décadas? Escreve Burroughs:
“Bato o olho no manuscrito de Queer e sinto que simplesmente não consigo lê-lo. Meu passado foi um rio envenenado do qual se teve a sorte de escapar e cuja ameaça se sente de imediato anos depois dos acontecimentos registrados — se é doloroso e difícil ler o relato, que dirá escrever sobre ele. Cada palavra, cada gesto deixam os nervos à flor da pele. A razão dessa relutância se torna mais clara à medida que me obrigo a ver: o livro foi motivado e composto com base em um acontecimento que em momento algum é mencionado e que na verdade é cuidadosamente evitado: o tiro acidental que causou a morte de minha mulher, Joan, em setembro de 1951.”
Foi no México que Burroughs matou a mulher em uma brincadeira de Guilherme Tell – pediu que ela colocasse um copo na cabeça, mas errou o tiro. A cena está no alucinante Naked Lunch, de David Cronemberg, que adapta este e outros livros de Burroughs, como Exterminator!. Também comparece no fraco Beat (2000), de Gary Walkow (em que Joan é vivida por Courtney Love). E é revisitada em Queer, de Guadagnino. Até a morte da mulher, o escritor era só um vagabundo heroinômano que plantava maconha, trocava cartas com os outros integrantes da Santíssima Trindade Beatnik, Allen Ginsberg e Jack Kerouac, sobre os romances que um dia escreveria, e corria atrás de rapazes, casando-se com Joan mais pela amizade mútua às drogas que propriamente atração (embora tenham tido um filho, que já nasceu dependente de opiáceos e anfetaminas como os pais). Em On The Road, Kerouac retrata o casal se drogando o dia inteiro enquanto o filho “se alimenta de luz”.
Junky, editado por Ginsberg, narra, na primeira pessoa, de modo irônico, objetivo e preciso, as experiências de Burroughs em busca de heroína e de assumir plenamente a homossexualidade. Faltaria espaço para falar de Almoço Nu aqui, um dos livros mais inventivos do século 20 e ainda insuperável, se você espiar 90% da literatura realista contemporânea e seu apego ingênuo ao realismo social. E Queer parece um desenvolvimento de Junky, só que narrado na terceira pessoa. Apesar do aparente distanciamento por conta do foco narrativo, soa mais intimista, confessional e, em certas passagens, bizarramente romântico:
“Os Lee sempre foram pervertidos. Jamais vou esquecer o horror indizível que gelou a linfa das minhas glândulas — glândulas linfáticas, quero dizer, claro — quando a tal palavra venenosa marcou a ferro meu cérebro cambaleante: homossexual. Eu era homossexual. Pensei naquelas falsas mulheres de rosto pintado e com um sorriso idiota que eu tinha visto numa boate em Baltimore. Seria possível que eu fosse uma daquelas coisas inumanas? Eu perambulava pelas ruas num estado de atordoamento, como se tivesse sofrido uma concussão leve (...) Eu podia muito bem ter acabado com tudo, ter dado fim a uma existência que parecia não me oferecer nada além de miséria e humilhação grotescas. Mais nobre seria, pensei, morrer como um homem do que levar adiante uma vida de aberração sexual. Foi uma bichona velha — Bobo, como a gente a chamava — quem me ensinou que eu tinha a obrigação de seguir em frente e carregar meu fardo com orgulho pra todo mundo ver, superar o preconceito, a ignorância e o ódio com conhecimento, sinceridade e amor. Sempre que sentisse a ameaça de uma presença hostil, liberar uma nuvem espessa de amor como a de um polvo quando libera sua tinta para se defender (...) Foi ali que eu descobri o significado da solidão. Mas as palavras da Bobo, com o sutil estalido de suas consoantes sibilantes, me voltaram do alémtúmulo. ‘Ninguém nunca está realmente sozinho. A gente faz parte de tudo que é vivo.’ A dificuldade é convencer o outro de que ele é parte de você, portanto e aí? Nós, parte uns dos outros, precisamos trabalhar juntos. Certo?”
Este período está quase inteiro no filme de Guadagnino, quando o quarentão William Lee apresenta-se ao jovem soldado Eugene Allerton em todo o esplendor de suas “performances”, como Burroughs nomeava os monólogos em que incorporava o macho-palestrinha para encantar amigos e possíveis presas amorosas nos bares da Cidade do México. Apresentando muito menos descrições físicas de encontros sexuais do que em livros posteriores – como o hiperbólico Cities of Red Night, talvez a maior sucessão gráfica de paus, bolas, tripas e cus desde Marquês de Sade –, Queer narra o progressivo apaixonamento de Lee por Allerton.
Vivido pelo esbelto Drew Starkey – que lembra o Guy Pearce de LA Confidential – , Allerton deixa Lee maluco com seu jeito blasé. Entre shots de tequila e copos de cuba-libre e cigarros e muitos outros venenos, as calientes cenas de sexo dos dois são cortadas por sequências em que Allerton mantém-se fora do alcance romântico de Lee. Essa tensão é sublinhada pela sensação de que o filme reside num espaço fora do tempo e do espaço. Além de enquadrar estadunidenses expatriados na Cidade do México nos anos 1950, a direção de arte e a fotografia cria ambientes que parecem cenários descaradamente falsos.
Lee consegue convencer Allerton a acompanhá-lo à Colômbia para provar a ayahuasca – segundo leu em revistas de ficção científica, a substância seria capaz de experienciar a telepatia; a partir da huasca os russos teriam sintetizado a substância “telepatina”. Enquanto descem pela América Central, Lee se entope de xaropes paregóricos e enfrenta a síndrome de abstinência de opiáceos enquanto tenta uma conexão dilacerada com Allerton.
Mas o amor, obsessivamente buscado por Lee, só se realiza como um simulacro. Daí a beleza extraordinária do terço final do filme, em uma Colômbia recriada em estúdio, salpicada por momentos pitorescos (uma cena em que o casal de bichas grita de medo ao ver uma cobra obviamente fake já nasceu meme; a cena do feitio da ayahuasca está estilizada demais; a casa da bióloga bruja é habitada por uma preguiça gigante).
As sequências do transe de ayahuasca (inexistentes no livro) impressionam pela plasticidade com que Guadagnino transcria epifanicamente o desejo de Lee por dissolver seu ego primeiro no corpo de seu amado e, em seguida, em todo o universo – em uma piscada de olho sutil para o desfecho de 2001 de Kubrick. Outra boa sacada foi trazer para a viagem psicoativa o trauma que fraturou a vida de Burroughs: o assassinato acidental da mulher, na alucinação em que Joan se transmuta em Allerton.
Serpentes que engolem a própria cauda e centopeias escusas são outros elementos que dialogam com o rico universo visual de Burroughs, crivado de símbolos muitas vezes indecifráveis. Mas em Guadagnino pode-se ler a centopeia como um símbolo da facilidade do esquivo Allerton em escapar de relacionamentos, enquanto o uróboro representaria a contínua autodestruição de Lee, incapaz de deter seu eterno ciclo de dependências de amores e drogas.
O jazz bebop, trilha sonora da geração beatnik, aqui é substituído por Nat King Cole, Sinéad O’Connor, Prince, Radiohead, Nirvana e Verdena, entre outros, o que contribui com a sensação de deslocamento espaço-temporal. E, além da curiosa simbiose Bond+Burroughs, Guadagnino promove outro curioso casamento, entre Caetano Veloso e a dupla de trilheiros Trent Reznor/Atticus Ross, na linda canção “Vaster than empires”:
“How can a man who sees and feels be other than sad?
What is an experience if it’s not shared?
Our love will grow vaster than empires and more”
Mais solitário dos beats, William Burroughs ansiava urgentemente por conexão. Pouco antes de morrer, escreveu em seu diário: O que é uma experiência se não for compartilhada? Aconteceu mesmo? Eis uma definição envenenada para a literatura.
Gracias pela leitura,
abraços
Ronaldo Bressane
Interessante porque a imagem da serpente que come sua própria cauda é possivelmente uma esplendida metáfora da masculinidade, que é onde o filme é certeiro (vamos esquecer por enquanto toda mistificação dos trópicos, que o filme parece não duvidar). Interessante porque a história do homem que se deixa comer por sua própria cobra, enquanto abandona sua mãe ao viver em seu próprio quarto, é incrivelmente sexual. No entanto o texto, apesar de bem escrito, insiste na recusa de conversar sobre a forma como a história, citada apenas como metáfora - apesar da referência risivel (décadas atrás - aqui uma correção, faz só uma década e isso faz bastante diferença) - é sobre a cumplicidade masculina em sua misoginia flagrante (não estamos falando de apenas um trauma pessoal, e sim, caso leve um tempo lendo os textos que mulheres tem escrito, de um trauma coletivo). Nesse sentido, isso tudo ainda é bem fálico (essa insistente metáfora do gozo unicamente masculino), mas também é a tensão do falo que devora o sujeito, no seu desejo sempre autorreferente ou se devora quando o sujeito se torna a própria cobra e ainda assim, se devora. Nesse sentido, a autoficção masculina parece o adjetivo perfeito para a cena da cobra. Curiosamente ela é apenas literatura, enquanto quem lava louça faz autoficção. Interessante.
Acho curioso como as discussões têm se direcionado para um caminho psicologizante e moralista, com ênfase em motivações internas e externas, ressentimentos e outras elucubrações. A grande descoberta parece ser que tudo se transforma em mercadoria. Como isso é possível? Não sem ironia, fico pensando com meus botões: a canalhice dessa "grande revelação" é externa ou interna? Sou mais Negro Leo, rindo sério e afirmando que "a cultura no capitalismo é a capacidade de produzir afetos lucrativos". Os lucros, congenitamente mal partilhados, são o que realmente importam, não? A linguagem diz respeito ao poder, não à moral. Me espanta que sejam justamente os ousados e entendidos da cultura a se armarem com esse discurso, imputando aos outros árduas tarefas e grandes conclusões... mas, no final, trata-se de poder, não é? Mais do que de questões internas ou externas. Os colegas da estética realmente sofrem; já eu me permito outros engodos em minha área de atuação, onde vingar vem de vingança, mas não só. Procuramos tirar daí promessas a serem degustadas; nada brota do fino ar. E o tempo da serpente é o tempo todo.
P.S.: Como você, me reservo um espaço intermediário para dizer que gostei da referência a Ellen Bass; não a conhecia. Vou procurar. Abraços.