De Barbies e barbaridades
Ofensas literárias, Anne Carson, Vilma Arêas & outras mumunhas
“Só porque sua bunda está sangrando não quer dizer que você seja o cachorro vencedor”
[Norman Mailer ironizando um ataque seu contra Gore Vidal, que havia respondido com “O cachorro vencedor é aquele de quem todo mundo quer morder a bunda”]
NÃO-ASSUNTO DA SEMANA
Não, não vou falar da Barbie – nem tenho roupa pra isso (aliás a ilustração acima é da gênia Amanda Miranda, colaboradora da Morel 1).
Vou abordar um aspecto lateral do entrevero de Itamar Vieira Jr. com a crítica Ligia Diniz, as jornalistas Lygia Maria e Fabiana Moraes e o escritor José Eduardo Agualusa, que saiu das páginas da Folha de S.Paulo e chegou ao pântano chorumoso do Twitter, expondo às vísceras os limites entre arte e entretenimento. O que era pra ser uma discussão literária virou bagunça.
A maioria das pessoas ficou na arena detonando um ou outro lado, mas duvido que 90% da audiência tenha aberto sequer uma página do brilhante escritor do Recôncavo. Na raiz quadrada da treta reside um comportamento complicado: a dificuldade brasileira em lidar com críticas. No país do deixa-disso, da anistia para torturador e do passapanismo, todo mundo é amigo de todo mundo e pega mal falar mal – ainda que na cara (como sempre faço, e sempre me fodo).
Não existe pecado do lado de baixo do Equador, só hipocrisia mesmo. Assim, mesmo que cercada de duzentos dedos e pisando em um caminhão de ovos, uma crítica é rebatida como se fosse um assalto à mão armada. Como assim, ousar discordar do coro de améns?
Acabamos de sair de um longo ataque da barbárie à civilização que durou 6 anos – e ainda estamos a perigo. Natural então o FlaFlu à flor da pele. Aqui ou é calça de veludo ou é bunda de fora. Ou geral passa pano e geral é gênio, ou então o pau come sem classe. Não tem nuance nem meio termo, e as ofensas não têm verve.
Essa falta de debate público com acidez, de punhalada com estilo, me lembrou de Escritores Contra Escritores, organizado pelo espanhol Albert Angelo, que reúne ofensas trocadas por autores de todo canto. Fico pensando se fariam um desses no Brasil... Não temos essa tradição de falar na lata o que se pensa. Se existe, a coisa não vira literatura; fica no barbarismo de rede social, logo esquecido pela falta de classe do tapa, em geral desferido à socapa. Será nosso extremado cordialismo?
Se você espremer o volume, vai recolher uns litros de bílis. O excêntrico catalão compilou nesta edição da El Aleph algumas pérolas negras:
“Kurt Vonnegut é o pior escritor dos EUA” [Gore Vidal]
“Vidal sofre do medo de ser tomado como chato, estúpido, antiquado, uma péssima atitude para um novelista” [Kingsley Amis]
“Escrevia sobre beber para aproveitar alguma das horas que dedicava a isso” [Martin Amis sobre o pai, Kingsley]
“Toda a sua obra se centra em ser patético” [Frédéric Beigbeder sobre Michel Houellebecq]
“Saul Bellow é uma mediocridade miserável” [Vladimir Nabokov]
“Cada vez que leio Orgulho e Preconceito me dá ganas de desenterrá-la e golpear seu crânio com sua própria tíbia” [Mark Twain sobre Jane Austen]
“Dei uma olhada nos livros de Roberto Bolaño e me aborreci espantosamente” [Isabel Allende] “Ele falava mal de todo mundo. Era uma pessoa extraordinariamente conflituosa que nunca disse nada de bom de ninguém. É um bom escritor que desgraçadamente morreu, mas isso não faz dele uma pessoa melhor”
Pero antes que Bolaño morresse, él dicho:
“Nem sequer acho que Isabel Allende seja uma escritora, é uma escrevinhadora”
“Não mudaria de ideia se tivesse bebido com ela. Primeiro, porque essas senhoras evitam beber com alguém como eu. Segundo, porque já não bebo. Terceiro, porque nem nos meus piores porres perdi uma lucidez mínima, um sentido da prosódia e do ritmo, um certo pudor ao plágio, à mediocridade ou ao silêncio”
“Se tivesse que escolher entre ela e António Skármeta, ficaria com Allende, mas escolhendo entre a espada e a parede”
Mais do genial chileno, que sofria… do fígado:
“Os méritos de Paulo Coelho? Os mesmos de Isabel Allende: vende livros”
“A literatura chilena gira em torno de um sol morto que se chama Pablo Neruda“
“A melhor lição de literatura que deu Vargas Llosa foi fazer jogging nas primeiras luzes da alvorada”
Outro que tem a língua podre é o argentino César Aira:
“No último Congresso da Língua vi Saramago, Sábato… alguns chegam a um ponto que nos dão vergonha alheia”
“O melhor Cortázar é um Borges ruim”
Os beats apanham o seu tanto:
“Walt Whitman recitado por um caminhoneiro, o budismo ao alcance dos leitores de Reader’s Digest e um incalculável palavreado de bêbado pseudofilosófico” [Juan Luis Panero sobre Jack Kerouac]
“O que faz não é escrever, é bater à máquina” [a clássica de Truman Capote sobre Kerouac]
Hemingway é alvo fácil:
“Que outra cultura poderia ter produzido alguém como Hemingway sem perceber a piada?” [Vidal]
“Não é humano” [F. Scott Fitzgerald]
“Tenho muito mais a dizer que Hemingway, e Deus sabe que o digo melhor que Faulkner” [Carson MacCullers]
“Nunca usou uma só palavra que enviasse o leitor ao dicionário” [William Faulkner]
“Não gosto dos homens que tomam o caminho mais rápido” [Faulkner de novo, ao saber que Hemingway se matou]
Viu só do que você se livrou no país cordial, querido Itamar?
Ah: na minibio do livro, diz-se que o antologista Albert Angelo é entomólogo, clarinetista e crítico literário: “Sua feroz defesa da privacidade o levou, em várias ocasiões, a disparar com balas de verdade contra jornalistas que queriam entrevistá-lo. Tampouco lhe agradam os escritores”. Faz sentido.
#PILHADELEITURASPERDIDAS
Criei essa hashtag ainda no tempo da Dilma. “Zapeio livros”, pra usar a expressão televisiva de Sérgio Sant’Anna: leio muitos ao mesmo tempo, tem coisas que comecei há anos e vou terminando devagar, tem coisas que abato em duas horas, minha casa é uma biblioteca onde vivo achando e perdendo livros. Então aí vão dicas de coisas que mal tirei da pilha mas que você já precisa ler.
UMIDADE E UNIDADE EM ANNE CARSON
Sabe aquela cena do Matrix em que o Neo toma umas injeções de mil coisas diferentes (kung fu, krav maga, tae kwon do, física quântica, como usar o Excel, a cartografia do clitóris etc) e baixa automaticamente no HD? É assim que você se sente lendo esta antiBarbie que é a Anne Carson. A véia é genialidade na veia. Especialista em grego antigo, mas nada professoral e nem um pouco chata, em seus textos a canadense faz com que você se sinta tomando um chá com Sócrates, Godard e Elizabeth Bishop (um chá de cogumelos?). Carson tem de fato o condão de contemporaneizar temas clássicos, sem porém forçar a barra no anacronismo.
É o que faz, por exemplo, ao dissecar a noção de sujeira atrelada ao conceito de feminilidade, desde os antigos, para demonstrar através da linguagem como funciona o machismo estrutural. No ensaio “Desejo e sujeira”, Carson lembra Hesíodo, aquele que dizia que a gente nunca se banha no mesmo rio duas vezes – mas, que se nele uma mulher tomar banho, é pior ainda: “Que o homem não limpe a pele na mesma água em que a mulher se banhou. Pois disso resultará dura punição, e por muito tempo”, afirmava o filósofo, que jamais deve ter tido a ventura de dividir uma banheira de espuma com Afrodite. A higiene é coisa física e moral, e seres que menstruam são perigosos para a sociedade grega:
“A mulher é uma unidade móvel, o homem, não (é amplamente aceito que o casamento, na sociedade grega, era patrilocal). Desde o nascimento o cidadão masculino tem um lugar fixo em sua casa e cidade, já a mulher se move (... ) Ilhar a mulher, isolá-la da sociedade e de si mesma, é comprovadamente a estratégia por trás de muitas noções, convenções e rituais que circundavam a vida feminina no mundo antigo. (...) Mulheres são molhadas, fisiológica e psicologicamente (...) Aristóteles nos diz que o molhado é aquilo que não tem qualquer limite intrínseco, mas que pode ser delimitado, enquanto o seco tem limites intrínsecos, mas dificilmente é delimitado por outros. A partir desse raciocínio podemos diferenciar mulheres e homens não apenas como molhados e secos, mas também como não delimitadas e delimitados, conteúdo e forma, poluídas e puros (...) Pode-se definir sujeira como ‘matéria fora de lugar’ (...) As mulheres portanto são poluíveis, poluídas e poluentes, de mais de uma maneira e ao mesmo tempo, segundo Aristóteles. Enquanto seres sociais, são módulos de perigo, ultrapassando as fronteiras da casa e da família, via casamento, prostituição ou adultério. Enquanto seres psicológicos, são um composto instável de engodo e desejo, propensas a vazamentos. Em suma, a psique feminina, a vida social feminina e também sua vida moral são penetráveis, porosas, mutáveis e sempre sujeitas à profanação”.
O ensaio ainda passeia por James Joyce, traduz um poema de Safo e encerra com uma tirada de Dorothy Parker – comprovando, em sua forma sinuosa, de maneira tão inteligente que dá até raiva, que a volubilidade feminina é o superpoder que manteve e mantém homens frágeis morrendo de medo e criando estratégias que vão do uso de véus à violência mais grotesca.
A escrita úmida de Carson é única na hibridez de registros, tons e gêneros. Traduzidos por Sofia Nestrovski, os onze ensaios reunidos em Sobre Aquilo Que Eu Mais Penso (Editora 34) vagam entre a erudição extrema e a associação inesperada; passeiam da autoficção ao ensaio até o poema; classicizam o contemporâneo e modernizam o antigo. Outros temas são o sublime (em Longino e Antonioni), o sono, a guerra, a candura, o eclipse, o azul, o desprezo (em Homero, Moravia e Godard), Deus (em Simone Weil, Marguerite Duras e Safo) e o maravilhoso “direito de permanecer calado”, em que esboça seu método inimitável:
“Para resumir. Sinceramente, não sou muito boa nisso de resumir. O melhor que posso oferecer é um borrão final de tinta branca. Como classicista, fui treinada para buscar a exatidão e para acreditar que é possível alcançar um conhecimento rigoroso do mundo, sem deixar resíduo. Esse resíduo, que não existe – pensar nele já me revigora. Só de pensar na posição dele, em como ele a compartilha com camadas embebidas de vazio, só de pensar em como ele se movimenta, como nunca pode parar de se movimentar, porque eu estou me movendo com ele, só de pensar em sua sombra, que é projetada por nada, e que portanto não tem em si nada (ou quase nada) de morte – só de pensar nessas coisas, tenho a sensação de me libertar.”
PAUSA
João Donato se foi, e com ele a habilidade em criar música usando o silêncio, o vazio, a pausa. Uns 12 anos atrás tive a sorte de passar uma tarde com ele, a convite da revista Pororoca (editada por Rogério Assis, que fez o clique acima). Cheguei uma hora mais cedo e fiquei tomando uma cerveja e fumando um cigarro na muretinha da Urca, bem em frente ao prédio onde ele morava. E juro: durante uma hora o mestre ficou tocando, com todas as variações rítmicas possíveis, a mesmíssima célula melódica composta apenas de ré bemol, si bemol e fá sustenido (nunca vou esquecer). Nenhum acorde, nenhum ritmo acompanhava a melodia cercada de lacunas. Com três notas ele construía uma catedral. Sabe-se lá o que se orquestrava dentro da cabeça dele.
Depois que toquei a campainha, ele surgiu com a camisa havaiana aberta anunciando o barrigão, olhos pacíficos, na mão um fininho, que, meio tímido, escondeu da imprensa. Mas meia hora depois dividíamos o mesmo baseado. Ao contrário do que prega Ruy Castro, a bossa nova não foi só temperada pelo uisquinho dos cariocas Tom e Vinicius. Antes, foi bastante enfumaçada pelas maconhas de dois Joões, o baiano Gilberto e o acreano Donato. Minha tese do THC como fundamento para a leseira da bossa nova está confirmada no fantasmagórico Ho-Ba-La-La, do alemão Mark Fischer.
Embora eu tivesse chegado no horário – coisa rara – , tinha esquecido o gravador. Ele comprou uma dúzia de Sonys depois da turnê no Japão e me presenteou com um. Você pode ler a entrevista inteirinha aqui. Quando saí de sua casa, cabeça fervilhando, parei na muretinha para mais um cigarro. João Donato voltou à mesmíssima tríade que tocava em pizzicato sincopado antes de eu chegar, como se nada tivesse acontecido entre as duas da tarde e as nove da noite; como se uma conversa fosse só uma pausa entre melodias. Uma vida seria uma melodia entre duas pausas? João se foi mas deixou a lição zen: o silêncio soa bem.
ARTE LONGA, ESCRITA BREVE
Outra antiBarbie, Vilma Arêas é nossa maior escritora e nem vou discutir. Publica só quando dá na telha e só quando sua obsessão deixou seu texto perfeito – “publico pouco porque tenho uma lata de lixo no escritório”, diria Wislawa Szymborska. Aos 88, ganha afinal um merecido volume de obras reunidas, organizadas por Samuel Titan Jr. Todos Juntos (Fósforo) reúne sua produção ficcional: do livro de estreia Partidas (1976), ao inédito Tigrão, passando pelos vencedores do Jabuti Aos Trancos e Relâmpagos (1988), A Terceira Perna (1992) e Um Beijo por Mês (2018). Completam o volume Trouxa Frouxa (2000) e Vento Sul (2011).
A apresentação dos sete livros começa em 2023 e volta até 1976. É uma escritora de ficções breves, guiadas pela ética inegociável de uma Natalia Ginsburg e pela régua precisa de um João Cabral, embora partilhe com a amiga (e objeto de estudo em vários ensaios) Clarice Lispector a espreita pelo momento fugaz e significativo da epifania.
A epifania pode surgir na contemplação de uma pintura – e em alguns textos Arêas se aproxima de Sérgio Sant’Anna na leveza entre o ensaio visual e a narrativa atmosférica –, pode ser na arqueologia familiar, como no cruel “República Velha”, narrado da perspectiva de um fazendeiro misógino e racista, pode ser na ligeireza da descrição dos encontros e desencontros, como no divertido “Um beijo por mês”, conto-título do último livro. Ou pode ser ainda na melancolia dura do conto escrito especialmente para a Morel 3, “Estrela do mar”, em que Vilma Arêas recorda uma atriz carioca que se foi cedo demais. Um livro bárbaro.
DOIS LANÇAMENTOS
Toda Fúria (Gutenberg) é o novo livro do carioca Tom Farias, biógrafo de Cruz e Sousa e Carolina Maria de Jesus. Caniço, garoto inteligente e carismático criado nas ruas do Rio de Janeiro, é mais um sobrevivente em um mundo que nunca o quis vivo. Seu desprezo pelo perigo chama a atenção de líderes corruptos, que o exploram em benefício próprio, e de chefes do tráfico, que lhe oferecem a chance de se criar no crime. No dia 24 de julho, a partir das 18h, Tom recebe pra um papo sobre a obra seu chapa Paulo Scott, autor de Marrom e Amarelo (Alfaguara).
Na Livraria da Vila (rua Fradique Coutinho, 915, Pinheiros, SP).
Tirem o louco da casinha e o soltem na página. Com ímpeto arqueológico, os organizadores Silvana Guimarães, Ramon Mello e Jorge Lira passaram anos escavando computadores, memórias externas, sites, blogs e anotações em cadernos e diários de Rodrigo de Souza Leão, encontrando cerca de 900 objetos poéticos, espalhados em 23 reuniões prévias. Neste belo volume da Demônio Negro, foram reunidos 377 poemas nunca antes impressos. Extrair do mínimo o máximo, ser máximo no mínimo: eis o paradoxo de sua lírica.
Tudo é pequeno
A fama
A lama
O lince hipnotizando a iguana
O que é grande
É a arte
Há vida em Marte
Eis um escritor que nunca quis silenciar, mesmo acossado por dificuldades advindas de sua condição mental, mesmo isolado no quarto ou em clínicas psiquiátricas, mesmo sem circular com desenvoltura pelos círculos literários. Tomara que, agora impresso, para além da melancolia e da autoironia, além da neblina do sofrimento psíquico, os leitores possam capturar e se deleitar com a beleza e a originalidade da poesia de Rodrigo de Souza Leão.
Nesta sexta 21 de julho a partir das 19h vamos celebrar essa vida louca vida com a leitura dos poetas Bruna Beber, Leonardo Gandolfi, Luiza Romão, Marcelo Ariel, Maria Isabel Iorio, Natasha Corbelino e eu.
Na Ria Livraria, rua Marinho Falcão, 58, Vila Madalena, São Paulo.
Gracias pela leitura!
Abraços,
RB
Vilma Arêas é incrível.
não sabia desse lançamento com a obra reunida, fiquei feliz demais. valeu por compartilhar :)
Altas expectativas com o Toda Fúria por aqui.