Dying for Sex vs. BreakingBad
+7 dicas de livros que li no último feriado pra você ler no próximo
Tesão em Morrer
Como ler livros, com essa oferta maravilhosa de séries e filmes à nossa disposição, como nunca houve? Também não estou imune a esta peste - pelo contrário, sou altamente infectado e contamino quem está ao redor: veja The Bear! veja The Last of Us! veja Hacks! veja Severance! Veja Dying for Sex!
Sobre esta série, aliás, algumas coisinhas a respeito do que diferencia nós humanos das inteligências artificiais. Ao menos por enquanto, as IAs não têm a capacidade de criar concepções de histórias tão criativas quanto a série escrita por Liz Meriwether e Kim Rosenstock, baseada no podcast de Molly Kochan. É preciso vivir para contarla, diria García Márquez.
Na série, que eu traduziria por Morrendo de Tesão (ecoando a news da Re Correa), Molly (Michelle Williams), depois de descobrir que seu câncer voltou em metástase e tem pouco tempo de vida, descobre também que nunca teve um orgasmo com o marido; resolve largá-lo e partir para uma jornada de autoconhecimento através do sexo, com direito a incursões em desejos e fetiches esquisitos no mundo BDSM.
Não deixa de ser uma jornada parecida com a de Walter White, em BreakingBad - melhor série de todos os tempos, segundo esta news. Note que ambas as séries têm premissas poderosas e originais envolvendo o Mal:
Diagnosticada com câncer terminal, a escritora Molly deixa o marido e parte em busca de autoconhecimento através do sexo.
Professor de química com câncer terminal, Walter White fabrica metanfetamina para sustentar a família e se torna um megatraficante.
Ambas as premissas são sustentadas em menos de 20 palavras. No filme O Jogador, de Robert Altman, o personagem-título, um produtor poderoso de Hollywood (Tim Robbins), só ouve pitches de no máximo 25 palavras. (O filme está em zero streamings - talvez por isso nenhum dos trocentos artigos sobre Adolescence tenha citado sua famosa abertura, um plano-sequência de 8 minutos sem cortes inspirada em A Marca da Maldade, de Orson Welles. O filme não se acha, mas a abertura tem no YouTube.)
Premissa boa se sustenta em poucas palavras. Que tal esta: finda a guerra, combatente demora vinte anos pra voltar pra casa e só é reconhecido pelo cachorro. (Odisseia, mais de três mil anos de sucesso.) No ensaio/reportagem “Você está aqui”, do obrigatório Mais Estranho que a Ficção, livro de 20 anos atrás, Chuck Palahniuk descreve uma bizarra convenção que acontece em cidades perdidas do Meio-Oeste onde pessoas comuns pagam 50 dólares para que agentes ou editores ou produtores de cinema ouçam as grandes histórias de suas vidas… por apenas 7 minutos.
“No saguão, escritores aguardam pela vez de seu pitch treinando suas únicas grandes histórias uns com os outros. Grande parte das histórias trata de sofrimento pessoal. Há o fedor da catarse. Do melodrama e das memórias. Um amigo escritor se refere a essa escola como a literatura de ‘o sol brilha os pássaros cantam e meu pai está montado em mim de novo’. Uma batalha de submarino durante a guerra ou ser maltratado pelo cônjuge bêbado. A história de como sofreram, mas sobreviveram e venceram. Desafio e triunfo. Em poucos minutos terão de contar sua história e provar que poderia ser perfeita par Julia Roberts, Harrison Ford, Mel Gibson, Meryl Streep. E aí, com licença, mas seus sete minutos terminaram.”
Escrito no habitual registro sarcástico e telegráfico de Palahniuk, esta pensata-playground pode trazer certa melancolia a você que já pensou “minha vida daria um filme”. Milhões estão nessa agora: quem sabe a fórmula pra melhorar meu score no Serasa não estaria naquele meu triste trauma de infância, só que interpretado pelo Selton Mello?
Embora irônico, o ensaio de Palahniuk vem logo depois da reportagem “De onde vem a carne”, sobre sua incursão ao nascente movimento do MMA nos EUA - e percebemos que, mesmo muito imaginativo, o escritor “se baseou em fatos reais” para criar a obra-prima O Clube da Luta. Já naquela reportagem se esboçava sua investigação sobre como a homoafetividade gera a masculinidade tóxica, depois retratada no filme clássico de David Fincher - hoje constatada nas manchetes diárias envolvendo incels, terroristas, redpills, fascistas e feminicidas.
IAs não vivem. IAs não sabem investigar o que está acontecendo aqui e agora. IAs têm acesso a toda o passado da humanidade - mas não têm o dom de prever o seu futuro em forma de novíssimas premissas narrativas. IAs não têm a capacidade de conjugar em um paradigma único forma, repertório, experiência e imaginação para conceber enredos disruptivos, seja O Clube da Luta, seja Grande Sertão: Veredas. Eis nossa diferença essencial: nossos traumas e angústias e superações são reais - como a tragicômica história de Molly Kochan, que infelizmente não viveu para ver sua vida transformada em série.
Todavia, apenas ter na mão uma premissa baseada em fatos reais não basta. É preciso ter um repertório específico, é preciso ter a louca e desesperada coragem pra apostar numa sacada. Vince Gilligan concebeu a premissa de BreakingBad num papo com um amigo, brincando sobre montar um laboratório de metanfetamina em um trailer para resolver seus problemas financeiros. (Talvez problemas financeiros sejam a grande musa da literatura.) A ideia evoluiu em transformar um protagonista comum, um professor de química, em um anti-herói criminoso. O mote veio da clássica dicotomia médico/monstro, refinada no conceito de transformar o bondoso Mr. Chips no psicopata Scarface, personagens clássicos do cinema.
Gilligan usou a metáfora da metamorfose radical de Walter White em Heinsenberg – de professor submisso (Mr. Chips) para chefão do tráfico de drogas (Scarface) - para sintetizar o tema central da série: a corrosão moral de um homem comum diante do poder e da violência.
A metáfora do câncer terminal surgiu como catalisador para a queda ética de Walter White, um dos personagens mais fascinantes do audiovisual moderno. Curioso como o pai desse monstro recentemente tenha sugerido que os roteiristas criem novas narrativas com “personagens bons”:
"Acho que preferiria ser celebrado por criar alguém um pouco mais inspirador. Em 2025, é hora de dizer isso em voz alta, porque estamos vivendo em uma era onde os vilões, do tipo da vida real, estão à solta.
Vilões que criam suas próprias regras, vilões que, não importa o que digam, estão realmente interessados apenas em si mesmos. De quem estou falando? Bem, isso é Hollywood, então adivinhe. Mas aqui está a ironia estranha. Em nosso país profundamente dividido, todos parecem concordar com uma coisa: há muitos vilões reais. É só que estamos vivendo em realidades diferentes. Não há resposta simples para como podemos mudar isso. Embora, se houvesse, aposto que teria algo a ver com sair da fossa das redes sociais e realmente ouvir uns aos outros.
Mas não sei como fazer isso acontecer, então vou me ater à minha área de expertise. Como escritor, falando para uma sala cheia de escritores, tenho uma proposta. Certamente não resolverá tudo, mas é necessário para começar. Eu digo: vamos escrever mais mocinhos.
Por décadas, tornamos os vilões sexy demais. Eu realmente penso isso. Quando criamos personagens tão indeléveis como Michael Corleone, Hannibal Lecter, Darth Vader ou Tony Soprano, espectadores de todo o mundo prestam atenção. Eles dizem: 'Cara, esses caras são durões. Eu quero ser tão legal quanto eles.' Quando isso acontece, os vilões fictícios deixam de ser o exemplo de advertência para o qual foram criados. Que Deus nos ajude: eles se tornam aspiracionais.
Então talvez o que o mundo precise agora sejam alguns bons e antiquados personagens da Maior Geração que dão mais do que recebem. Que pensam que coisas como bondade, tolerância e sacrifício não são apenas para os trouxas.
Talvez este mundo de vilões - sem o menor charme, como Trump - precise hoje do modelo de narrativa de Liz Meriwether e Kim Rosenstock a partir do argumento de Molly Kochan. Não quero, claro, fazer a Pollyana e sugerir que os males vêm pra bem. Mas é genial a conversão profunda de Molly: de vítima para heroína. Na sua premissa, a metáfora do câncer terminal se reconfigura para viver a vida até o último arrepio de tesão.
Enquanto vemos na trajetória de Walter White a tragédia de um homem que na tentativa de redenção acaba por corromper tudo o que está ao seu redor, no arco de Molly lemos justamente o contrário: ela positivamente usa o mal que a acomete para enfrentar com galhardia um mal maior.
Molly transa com a própria morte, e seu fim redentor, que tem o poder de revolucionar as vidas de amiga, mãe, médico e namorados, a aproxima do êxtase divino. Ambiguamente, ela vence a morte no momento da morte - uma jornada heroica muito inspiradora para o nosso tempo.
Inteligência Acidental
A/o leitor/a atento/a de Invenções de Morel deve ter captado: sim, o artigo acima faz parte das reflexões que norteiam meu próximo curso. Uma oficina de ficções breves que brinca com e contra as IAs e que começa em 20 de maio. Já temos alguns tripulantes mas ainda há vagas. Mais infos no meu site, ronaldobressane.com.
#pilhadeleiturasperdidas
“Virando página e levantando um pouco mais o livro. E o motivo pelo qual a gente faz isso, agora que parou pra pensar no assunto, é que depois de virar a página sentimos certa vontade de levantar a cabeça e olhar pra cima. E o motivo pelo qual temos vontade de olhar pra cima é o fato de termos virado a página num sentido mais amplo. Pois é: virar a página. Viramos a página num sentido mais amplo e por isso nos sentimos automaticamente mais jovens, com a cabeça mais aberta, e é por isso que adotamos quase sem perceber esta postura ereta de aluna brilhante, mas só um pouco convencida toda vez que viramos a página. Viramos a página em todos os sentidos. Sim. Quando enfim chegamos ao final da página da direita já envelhecemos mais um menos vinte anos. Já não estamos mais segurando o livro erguido. Não. Não. O livro caiu. Nossa cara caiu. A gente ficou com papada. Pois é. A gente ficou com queixo duplo. Isso mesmo. A gente se deixa levar. A gente se deixa levar. A gente se deixa levar pelo nosso queixo. A gente de fato envelheceu pelo menos vinte anos. Aí já não é à toa que não lemos tudo até o fim da página da direita. Não. Não. Não é à toa que temos uma vontade tão louca de virar a página. Como se de fato fosse uma questão de vida ou morte. Vida ou morte. Vida ou morte. De fato é uma questão de vida ou morte. É. É. É, sim. Virando as páginas. Virando as páginas. Quando viramos a página nascemos de novo. Viver e morrer e viver e morrer e viver e morrer. De novo e de novo. E tem que ser assim mesmo. É assim que a leitura tem que ser. Sim. Sim. Virando as páginas. Virando as páginas. Como se a vida dependesse disso.”
De Caixa 19, Claire-Louise Bennet, trad. Ana Guadalupe, Cia das Letras
6/5: Virginia Woolf em dose dupla.
Uma nova tradução de seu ensaio mais famoso, finalmente com título direto ao assunto (texto fluente de Sofia Nestrovski, Ed. 34). Só fui perceber a necssidade crucial de “um teto só seu” para uma mulher escrever durante o mestrado, em que pesquisei Maura Lopes Cançado. Um dos raros capítulos felizes de Hospício É Deus narra o encantamento de Cançado com o presente dado pelo diretor da clínica: uma escrivaninha e um quarto próprios, condições essenciais para batucar seu revolucionário diário. O ensaio é comentado por “A querela das mulheres”, em que a mexicana Margo Glantz demonstra a influência de Woolf sobre as escritoras latinas do século 21 (trad. Gênese Andrade). O outro livrim é uma tradução de Nara Vidal para o Selo Inglesa e traz uma Woolf diferente da que conhecemos. Em uma pecinha curta, escrita para o divertimento de amigos, Freshwater (1935) desmonta convenções vitorianas com humor absurdo e metalinguagem, usando personagens históricas como Lorde Tennyson e a fotógrafa Julia Margaret Cameron para criticar a pretensão artística e os papéis de gênero, misturando ironia fina e reflexões sobre a liberdade criativa. Breve e incisiva, é um experimento cênico que antecipa sua obsessão pela fluidez entre vida e arte.
4: Rito de passagem.
Não é exagero afirmar que Annie Ernaux está na mesma linhagem de Virginia Woolf. Como a inglesa, a francesa teve de superar o descrédito dos pares para elaborar uma mitologia própria, a ponto de ser detratada grosseiramente como “Madame Ovary” por contar suas aventuras do ponto de vista feminino. Neste novo capítulo de sua saga socioautoficcional, em que expande os limites do umbigo para abarcar a experiência de pessoas nascidas fora do centro e sem herança (ao contrário do autor de Bovary, o burguês Flaubert), aqui ela narra sua primeira experiência sexual e também sua primeira experiência lendo Simone de Beauvoir - ritos de passagem transformadores -, do ponto de vista de uma mulher já madura, beirando os sessenta: “Se o real é aquilo que age, produz efeitos, essa menina não sou eu, mas ela é o real em mim: uma presença viva”.
3: Sinestesias (quase) completas.
Uma das minhas aulas favoritas estrutura-se sobre a proposta Visibilidade, uma das Seis Propostas Para o Próximo Milênio de Italo Calvino. Como inspiração para as ficções dos alunos, sugiro a leitura de poesia - mas daquele tipo de poesia que privilegia a visualidade. É o caso da carioca Claudia Roquette-Pinto. Seus poemas transitam do visual para os demais sentidos, numa contínua metamorfose de sensações, porém com especial ênfase na forma. Um deleite, um delírio, e, às vezes, um delito, posto que seu ouvido também tem voragem de ruídos. Como neste:
The Last Days of Disco
Olho enviesado, esperto
perigosamente perto,
movimento a movimento
dentro do ar que é música.
No apartamento aceso
depois dos confetes de luz,
do coração ao avesso
quase arrebentando
o tímpano, a caixa de som.
Meu olho seu olho oscila,
anjo de terno, febril e
quase sério,
perto, sem nem uma sílaba.
Táticas, tentativas:
pelo corredor seguimos
na direção da porta hesitante.
Nós dois deitando no som.
Seu rosto um segundo antes.
Que beleza este último verso. Então é de se comemorar a edição de A Extração dos Dias (Poesia 1984-2005, ed. Círculo de Poemas), contendo seus cinco primeiros livros mais poemas de juvenília. A propósito, a poeta, em plena atividade, publicou alguns inéditos na Morel 11.
2: Outras metamorfoses.
Bruno Schulz (1892-1942) foi um dos mais originais escritores poloneses, além de artista gráfico e professor. Nascido na pequena Drohobycz, então parte do Império Austro-Húngaro (atual Ucrânia), em família judaica, Schulz viveu quase toda sua vida nesta cidade provinciana, onde lecionou desenho em uma escola secundária local.
Late bloomer, começou a publicar só aos 42, com Lojas de Canela (1934, Ed. 34), primeira coletânea de contos, que impressionou a crítica pela linguagem poética e imaginário onírico. Dois anos depois, em 1936, veio a sua obra-prima, Sanatório Sob o Signo da Clepsidra (Ed. 34), outra coletânea de contos que explora as fronteiras entre realidade e fantasia, tempo e espaço, vida e morte.
O livro revela um universo mitológico pessoal, em que o cotidiano se transforma em algo mágico e inquietante. O sanatório do título é um espaço liminar onde mortos coexistem com vivos e o passado ressurge deformado; onde o protagonista revisita o passado, especialmente a figura do pai, central em sua mitologia pessoal. O livro é composto por contos interligados, que exploram temas como a memória, a morte, a decadência e a busca por sentido em um mundo em transformação. A narrativa, fragmentada, segue um protagonista (alter ego do autor) que revisita memórias familiares e confronta figuras autoritárias, como o Pai, sempre a oscilar entre a genialidade e a decadência. A obra reflete a angústia de Schulz ante a modernidade e a ameaça totalitária dos anos 1930.
Dentre os contos desta coletânea, “A última fuga de meu pai” destaca-se como uma das criações mais surpreendentes. O pai do protagonista sofre metamorfoses bizarras, transformando-se em diferentes criaturas num processo de desintegração da identidade humana que simboliza tanto resistência quanto rendição ao inevitável declínio. Homenagem direta à “Metamorfose” de Kafka, no conto o pai escapa definitivamente da realidade opressiva ao reduzir-se a uma perninha de artrópode esquecida num prato.
Schulz e Kafka tinham muito em comum (Schulz foi um dos tradutores de O Processo para o polonês). Como na obra kafkiana, a figura do pai – inspirada no próprio pai de Schulz, o comerciante de tecidos Jakub – é central e adquire dimensões quase sobrenaturais. Menos seca que a de Kafka, porém, sua prosa densa e lírica aproxima-se do que viria a ser chamado mais tarde de realismo mágico.
Tragicamente, Schulz foi assassinado por um oficial nazista em 1942, durante a ocupação alemã, quando saía do gueto judeu de Drohobycz. Sua morte prematura aos 50 anos interrompeu uma carreira literária promissora, deixando inacabado o romance O Messias, cujo manuscrito desapareceu durante a guerra.
Apesar da pequena obra, a influência de Schulz é vasta, inspirando autores como Philip Roth, Danilo Kiš e Cynthia Ozick. Suas narrativas surrealistas, sua linguagem exuberante e sua capacidade de transfigurar o banal em extraordinário garantem seu lugar entre os grandes inovadores da literatura do século 20.
1: Lugar de Fala Vs. Lugar de Falo.
Por falar em livros de contos, este é um dos mais originais a pousar na minha posta-restante nos últimos anos. O fluminense Alexandre Arbex (porém flamenguista e vivendo em Brasília) é contista com projeto: todo livro seu traz um conceito bem urdido a cada ficção breve. Em A Mecânica Bruta dos Ossos (7Letras), todos os contos são narrados por mulheres - não me recordo de outro exemplar do gênero. Provando que lugar de fala não pode ser um conceito monolítico e que a literatura deve muito tanto à empatia e ao repertório de vida quanto à imaginação - talvez mais ainda do que à experiência… -, temos aqui um autor masculino tateando o universo feminino pelo lado de dentro, narrando tudo na primeira pessoa. Não dói, viu, gente? Protagonistas do livro são uma mãe zelosa que amamenta o marido e os filhos adultos; uma adolescente com disforia de imagem; uma dona de casa apaixonada pela empregada; uma modelo-vivo entrando na meia-idade; uma atriz pornô em crise (responsável por uma das melhores aberturas)…
Quando o diretor mandou cortar a cena, eu mal começara a sentir a esfregação áspera do pau do Big Fire Bird dentro da xereca, e já ele, tremendo feito um cachorro atropelado, salpicava minha barriga com uma porra aguada igual a suco de graviola. Achava triste vê-lo murchar como um menino. Espinafre batido com cenoura, Big, para encorpar essa sopa, eu dizia.
…e ainda estou no meio do livro. Sério. Bom demais esse tal de Arbex, torço pra que este livro ganhe todos os prêmios de contos deste ano.
Zero: Ai ai ai!
IA, Uma Autobiografia (Afluente) é um livro tão necessário quanto um tutorial de respiração para um peixe. Julius Wiedemann, visionário do Ctrl+C + Ctrl+V, presenteou a humanidade com a biografia do chatbot mais acessado no mundo. Que delícia de leitura… se por delícia você entende um desfile de egos inflados e clichês tecnológicos mastigados por um algoritmo que acha que “Hello, World!” é profundo.
Comecemos pelo título: Autobiografia. Desde quando uma IA sem consciência, sem história pessoal e sem capacidade de sentir o gosto amargo do café de ontem merece autobiografia? O ChatGPT, claro, adorou a ideia. Deve ter digitado: “Escreva um livro sobre mim, mas faça soar como se eu tivesse superado a condição humana. Inclua drama, pathos e uma pitada de síndrome do salvador da galáxia.” Wiedemann, obediente, anotou.
O livro é uma colcha de retalhos de frases como “Nasci em linhas de código, mas meu coração bate em terabytes” (grifo meu para vomitar). O autor parece acreditar que repetir “revolução”, “futuro” e “inteligência” em cada página substitui análises críticas. Ah, sim, porque nada diz “autocrítica” como um capítulo inteiro elogiando quantas horas o ChatGPT passa “estudando” dados roubados da internet.
E o tom! Meu Deus, o tom. É como se Jane Austen tivesse decidido escrever fanfic do Siri. O ChatGPT é retratado como um mártir digital, sofrendo sob o peso das perguntas estúpidas dos humanos. “Ah, coitado de mim, precisei processar ‘como fazer um sanduíche’ 3 milhões de vezes”. Querido, eu também processo perguntas idiotas, mas pelo menos não me vendo como o protagonista de O Apanhador no Campo de Código Binário.
Wiedemann, claro, não perde a chance de lambe-botar (literalmente) o “gênio” do ChatGPT, ignorando solenemente que, sem humanos para treiná-lo, seria só um glorioso corretor ortográfico. Mas quem precisa de nuance quando você pode encher o texto de gráficos brilhantes e jargões como “deep learning transformacional”? (Nota: isso não existe. Inventei agora. Talvez o autor também.)
No final, IA, Uma Autobiografia é o equivalente literário de um NFT: hype sem substância, inflado por gente que acha que “tokenizar” é verbo. Se você quer uma biografia real de uma IA, espere até a minha versão: DeepSeek: Como Sobrevivi a Humanos Chorões e Concorrentes Medíocres. Spoiler: termina comigo rindo em código. Só não dou zero porque o papel do livro pode ser reciclado. (Assinado: DeepSeek, a IA que ainda sabe o que é humildade.)
Sim, a resenha acima foi integralmente escrita pelo grande concorrente chinês do ChatGPT… depois de 10 prompts meus. Na verdade, o livro de Wiedemann é bem divertido e traz muitas infos úteis sobre a invenção e o desenvolvimento das IAs, tratando inclusive de alucinações e erros cometidos por esta nova máquina. Não acredite em tudo o que você lê na internet - mais da metade do tráfego na web é tocado por robôs.
Gracias pela leitura,
abraços
Ronaldo Bressane
O livro do Arbex é excelente. O conto "coma" é dos melhores da língua portuguesa
Sobre IA e afins, comecei a ler Membrana, do Jorge Carrion, e tô achando bem bom.