Um Breque das IAs?
No mesmo mês em que milhares de motoboys de SP cerraram os braços no Breque dos Apps, demandando às bilionárias startups de entrega de comida melhores condições de trabalho (2 motoqueiros morrem por dia em SP), a Open AI lançou novas funcionalidades em seu ChatGPT, permitindo que qualquer reles mortal crie desenhos que parecem saídos da prancheta do venerável Hayao Miyazaki (a ilustra deste post foi criada pelo Gemini).
Logo depois que os novidadeiros de plantão lotaram stories com suas versões em anime, um levante de ativistas e artivistas de sangue nozóio dedurou: Vocês Estão Matando Nosso Trabalho. A Open AI deu uns passinhos pra trás e choveram memes do mestre Miyazaki estremunhado com os óculos na testa. Quem ficou com medo de ver o No Face sair debaixo da sua cama escreveu artigos condenando o uso das IAs: a esquerda jacobina alertou para o gasto assustador de água e eletricidade para cada prompt idiota que se digita, Você Vai Acabar com o Planeta Com Sua Cara de Chihiro, Seu Merda.
O fato é que as IAs estão DESCONTROLADAS.
Entre Apocalípticos e Integrados, foderemo-nos todos. Pra quem não conhece, este livro publicado pela Perspectiva é um ensaio seminal de Umberto Eco que divide o mundo entre Os Que Creem que a Mídia de Massa Mata a Arte X Os que Acham Massa Levar Arte às Massas. Eco, que não era bobo nem nada e publicou um best-seller criminal com sofisticadas passagens em latim, afirmava ser possível conjugar Mickey e Ulysses na mesma frase.
O que me lembra esta excelente passagem da news do Arnaldo Branco:
É verdade, como vários argumentam, que a IA é só uma ferramenta, e de fato fica meio esquisito sacudir o punho praguejando contra uma novidade tecnológica; parece que você tá comprando briga com uma calculadora. Mas em vista dos planos do Vale de Silício pra transformar o mundo em um paraíso feudalista pra bilionário, me sinto menos ingênuo com a minha desconfiança em comparação a quem afirma categoricamente que ela só foi feita pra ajudar.
Em 2013, em Crítica da Razão Negra (N-1), o filósofo camaronês Achille Mbembe já pautava o debate: os alquimistas estão chegando, quem tiver de sapato não sobra. Grosso modo, sua tese - o devir-negro do mundo - é a de que a velocidade tecnológica aliada à concentração de renda nas mãos de alguns vai fazer a humanidade inteira ser tão escravizada quanto o foram os africanos, que no século 16 foram tornados moeda, mercadoria e morte, com as consequências que todos conhecemos.
Não vai ter mais emprego e todo mundo vai morrer de fome. A solução humanista, segundo Mbembe, seria a reparação histórica para os africanos e a renda mínima universal - para todos (sim, o mesmo projeto que o Eduardo Suplicy pede há décadas). Crítica da Razão Negra continua a ser um dos livros fundamentais do nosso tempo - e o debate sobre regulação tecnológica continua longe de ser levado a sério pela sociedade civil e pela classe política.
Você tem alguma esperança? Nem eu, baby. No safety or surprise.
A publiça, sempre amoral, aderiu de prima: na TV há filmes que foram criados sem toda uma renca de profissionais - diretor de arte, fotógrafo, atores, maquiadores etc -, trocados por dois moleques com uma sacada genial e um Grok turbinado. Enquanto a Apple ainda não lança o seu Airpod com tradução simultânea, muitos tradutores chicoteiam Claudes e DeepSeeks para agilizar seu trampo, já bem mal pago: viraram meros editores de tradução.
Claro, vai demorar pra uma IA entregar um Grande Sertão: Veredas falando em inglês no nível da tradução da Alison Entrekin… Mas roteiristas e redatores usam direto, e navegando em um UOL da vida mal se distingue um texto escrito por um jornalista e por uma máquina. O que era ruim ficou pior.
Dois anos atrás, durante uma aula na USP em que estavam presentes vários professores de pós-graduação e pós-doc em letras, perguntei como eles usavam as IAs em seus departamentos. Ouvi grilos. Se na autoproclamada melhor universidade da América Latina ninguém sabe como funciona uma máquina de linguagem artificial generativa, a coisa vai mal.
Percebo que em muitas esferas - notadamente entre os comunistas de iPhone que odeiam o Vale do Silício - ainda se olha as IAs com o desdém típico da primeira fase do luto, a negação. Um misto de arrogância ignorante com luddismo encagaçado. Você não pode brigar com a realidade, e a realidade acontece todo dia, me disse uma vez um ladrão que tinha sido riquíssimo mas que perdeu tudo e, morando de favor, pedia dinheiro emprestado pra comer.
E a realidade é que, se as IAs estão descontroladas, a lógica do capital vai preterir os nota 6, 7, 8, 9 em favor de quem entregar um trabalho simples pelo menor preço possível. Logo veremos a próxima revolução disruptiva escanteando em progressão geométrica a profissão mais praticada do mundo: motoristas. Milhões de pessoas serão trocadas por veículos autônomos, muito mais confiáveis - e baratos. Já tem tecnologia para isso.
Philip K. Dick é meu pastor e nada me faltará. Em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (Aleph, tradução minha - sem IA), ele preconiza um futuro em que o mais valioso será o mais autêntico. Não só: ele antecipa nossa ansiedade em adivinhar o que é autêntico e o que é falso. Nem mesmo Rick Deckard, caçando androides, sabe se ele mesmo seria humano.
O fato inescapável é que, por enquanto, ainda não surgiu uma IA capaz de criar a história de um caçador de androides que se apaixona por uma androide e cujo sonho de consumo é um animal de verdade. Ainda não surgiu IA que criou a história de um jagunço apaixonado por outro jagunço escrita em uma sintaxe estruturada em 30 línguas; nenhuma IA criou a história de uma mulher que entra em êxtase ao engolir uma barata; nenhuma IA criou a história de um professor de química endividado que ao descobrir ter câncer vira traficante de drogas; nenhuma IA criou a história de um playboy que recorda sua vida fútil enquanto é devorado pelos vermes no túmulo.
Nenhuma IA escreveu a história de uma mulher que conta histórias para não ser morta pelo marido, nenhuma IA escreveu a história de um cavaleiro que luta contra moinhos de vento.
Ainda.
Aqui tem uma reportagem sobre a primeira IA que passou no Teste de Turing.
Aqui, a news do Arnaldo Branco.
E aqui, meu perfil de Edemar Cid Ferreira, o ladrão que caiu na real.
Inteligência Acidental
Meu novo curso de escrita criativa teve o nome escolhido pela inteligência da internet: meus seguidores no Insta. Eles preferiram este nome a Inteligência Radical, Inteligência Ficcional e Inteligência Natural (nomes, aliás, criados pelo DeepSeek a partir de meu prompt).
Nem apocalíptica nem integrada, nesta nova oficina de escrita quero trabalhar a Arte do Prompt. Afinal, há anos que minhas oficinas são estruturadas em prompts que escolho de autores do mundo todo.
Pois bem: na Inteligência Acidental, vamos trabalhar justamente prompts de ficções curtas, e praticar escrevê-las a partir dos nossos prompts. Pesquisar, investigar a carpintaria por trás de uma concepção criativa de literatura.
Carpintaria, sim: uma das salvações possíveis ante o avanço das IAs é a valorização do artesanal, do manual. Mas por que não incorporar novas ferramentas? Imagine se Machado de Assis usasse o Google, se Guimarães Rosa teclasse num Word, se Clarice Lispector fuçasse o Claude.
Vamos investigar os acidentes, os erros dando origem a novidades; os autores que fugiram à norma e “encontraram no fundo do Desconhecido o que há de novo”, como disse Baudelaire.
Um soneto não passa de um algoritmo; a concepção de um enredo não passa de um prompt. Vamos praticar a arte do inesperado: provocar o inesperado, mas, até que o esperado surja, esperá-lo, postergá-lo, distrair o leitor.
Exercitar as artes de usar as IAs para criar junto. Ler poemas feitos com Google. Discutir limites da tecnologia na arte. Tratar do acaso na ciência, como a maçã de Newton. Abordar a percepção da intuição e da sorte: praticar a leitura do acidente feliz.
It's a bingo! Erros dão cara para uma narrativa. A sujeira germina padrões, que se reproduzem em estilo, em identidade, em uma autoria indefectível, inconfundível.
Como desconhecer que o cartum abaixo é do infame Allan Sieber?
Suja de tinta, de suor, de lama, bela e imponderável, a impressão digital valiosa precisa sair do digital e voltar ao manual. Encontrar sua voz única, seus temas únicos, sua perspectiva de mundo exclusiva, passa por fugir do quadradinho e usar a sua irritação como atrito criativo, para criar histórias originais. É questão de sobrevivência.
Uma IA tem acesso a tudo o que já foi produzido. Mas o que ainda não foi produzido ainda está somente na sua cabeça. Uma IA olha o passado criativo da humanidade. Só você pode espiar a originalidade que está no futuro.
Inteligência Acidental vai ser por Meet, toda segunda, das 20h às 23h, a partir de 5 de maio. Interessou? Me escreva em ronaldobressane@gmail.com.
#pilhadeleiturasperdidas
5
Dentre as coisas que podem acontecer a uma jovem mulher, existe algo pior do que ter seu impulso roubado? Do que ter seu imenso potencial desperdiçado?
Caixa 19, de Claire-Louise Bennett
Companhia das Letras, trad. Ana Guadalupe
Este é só um dos vários períodos impressionantes deste romance estranho. O ponto focal é uma mulher que trabalha nove horas por dia como caixa num mercadinho de um subúrbio tosco na Inglaterra. Acompanhamos sua rotina excruciante que é atravessada por uma miríade de leituras, como se a escrita de si fosse alucinada pela prosa de invenção - ela alterna entre a primeira, a segunda e a terceira pessoas, num tour de force que lembra os melhores momentos de Ali Smith. Trechos de Ingeborg Bachmann, Nietzsche, Clarice Lispector, E.M. Forster, Tolstói, Blake, Calvino, Keats… Bennet joga trocentas referências no seu liquidificador para revolutear a imaginação febril da pobre caixa. Mesmo quando não há um teto só céu, a invenção pode ser toda sua.
4
Fiordilatte, de Miguel Vila
Veneta, trad. Michele Vartuli
Recém órfão de mãe, o jovem Marco namora Stella, mas não consegue lhe dar prazer. Ao trabalhar como babá do bebê da sorveteira Lulu, fica obcecado por seus peitos enormes. Só que o melhor amigo de Stella, Daniele, está de olho em tudo. Tudo se passa na encantadora villa de Bassaniga. Nenhuma página é igual na dinâmica estrutura arquitetada por Vila, que alterna quadrinhos microscópicos com closes grandes das taras deste quarteto. As cenas de sexo são espetaculares. O desenho classudo de Vila é acompanhado por diálogos certeiros em um profundo mergulho psicológico no tema da dependência afetiva. Uma história muito inusitada, narrada de forma magistral.
3
Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag
Companhia das Letras, trad. Rubens Figueiredo
Este é daqueles livros que você tem de ter. Em pouco mais de 100 páginas, Sontag disseca as razões por trás da empatia. Reportando-se às guerras do século 20 e dos massacres que seguem no século 21, Sontag investiga por que motivos a dor de uns é mais dolorida do que a dor de outros. Há por exemplo o caso de Virginia Woolf, que no ensaio “Três guinéus” demonstra o óbvio: guerras são provocadas por homens. Há ainda o caso de Ernst Friedrich, que no livro Guerra Contra Guerra! compilou centenas de imagens de soldados feridos e mortos em todo tipo de guerra, numa época em que, acreditava-se, se os cidadãos tivessem acesso a imagens do horror que acontece no front, a sociedade paralisaria suas ações até que fosse restabelecida a paz. Não foi bem o que aconteceu. Hoje, quando temos acesso a tudo o que acontece na Ucrânia, no Oriente Médio, no Sudão, sem falar em guerras particulares menores mas não menos trágicas, por que não ficamos chocados? Onde foi parar nossa empatia? As imagens ainda nos sensibilizam?
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Em um ensaio na excelente revista Compact, o escritor Jacob Savage investiga um fenômeno curioso: o desaparecimento do Escritor Macho Branco. Segundo ele, escritores machos brancos millenials héteros estão sumindo das premiações literárias, das editoras de literatura, das feiras literárias. Quer por desinteresse na chata vida macha hétero branca, quer por ascensão da cultura woke, Savage não vê mais espaço para escritores como Don DeLillo e Paul Auster (Norman Mailer e Philip Roth, então, nem se fala). Será? Respondendo à provocação, na também ótima revista Current Affairs o escritor Alex Skopic, usando fatos e argumentos, refuta Savage, diz que é tudo mimimi e que o macho branco hétero vai bem, obrigado. Será? Enquanto a discussão segue em aberto, sigo invejando a imprensa estadunidense, capaz de sustentar tantas revistas independentes tão bonitas e cheias de textos longos e provocativos…
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…mas duvido que nos EUA tenha uma revista tão surpreendente e bonita quanto a Morel. A edição de outono traz entrevista com Maria Fernanda Cândido em ensaio de Autumn Sonnichsen, ensaio em texto e foto de J.R. Duran, quadrinhos de Caeto e Eduardo Arruda, artes visuais de Carla Caffé, Nina Horikawa e Eduardo Kerges, fotocrônica de Fernando Laszlo sobre Augusto de Campos, ficções inéditas de Santiago Nazarian, Maria Valeria Rezende, Julia Codo, Rita de Podestá, Paloma Franca Amorim e Sidney Rocha, e poemas novíssimos de Augusto de Campos, Carlito Azevedo, Mariana Godoy, Leonardo Gandolfi e Ricardo Aleixo.
Você nunca sabe o que vai encontrar em uma Morel. E para encontrar Morel, revista impressa em papéis mais que especiais, sob demanda, em tiragem muito limitada, é só vir ao site da Ipsis.
Gracias!
Abraços,
Ronaldo Bressane