A edição Inverno da Morel ficou pronta, e tem duas capas:
Xênia França por Lorena Dini;
J.R. Duran visita Anselm Kiefer.
Tudo lindamente impresso pela Ipsis. Você pode pedir o seu exemplar de Morel aqui ou mandando um e-mail para cá.
Morel é impressa on demand, em sistema artesanal, exclusivamente em papel. Não tem versão digital. Olha o que tem dentro:
ENTREVISTA
Xênia França: uma xamanesa extraterrestre em estado de graça. Em fluxo de consciência, a cantora, compositora e modelo traça sua trajetória nada linear do Recôncavo ao Grammy, passando por espiritualidade, música, afrofuturismo e sua visão de utopia, em ensaio deslumbrante e estilosíssimo da fotógrafa Lorena Dini.
NÃO-FICÇÃO
J.R. Duran teve acesso total ao ateliê-fundação de Anselm Kiefer: uma visita espantosa ao fim do mundo, documentada em seu implacável preto-e-branco.
ARTES VISUAIS
O artista Denilson Baniwa explica por que as onças ocupam o imaginário do Brasil - muito antes de 1500.
RETRATO CALADO
Bob Wolfenson relembra as várias passagens de Rita Lee por suas lentes, em imagens para guardar pra sempre.
SE EU FOSSE...
A autora de ficção especulativa Ana Rüsche vê um futuro não muito glorioso para Elon Musk, com imagem de Marília Marz.
INTERVALO
O traço inconfundível de Tiago Elcerdo dá vida à narrativa tragicômica de Gaía Passarelli em uma viagem psicodélica pela Colômbia.
FICÇÃO
Micheliny Verunschk revisita O Som do Rugido da Onça, com imagem de Yacunã Tuxá [acima]; Aline Valek inventa uma religião sobre as pinturas de Wagner Willian criadas com IA; e um capítulo do thriller trapnejo Onde Pastam os Minotauros, novo romance de Joca Reiners Terron, ilustrado por Thany Sanches.
POESIA
Versos inéditos de Francisco Mallmann [acima] e Lucas Litrento.
CARTUM
O quadrinista Paulo Ciência tira onda das novas tecnologias.
Curtiu? Creia: em papel é muito mais impressionante.
AMOR INCONDICIONAL
Talvez um dos livros mais tristes já escritos? A Morte de Jesus (Cia das Letras) encerra a história de David, um garoto órfão adotado por Simón e Inés, cuja trajetória vinha sendo contada nos anteriores A Infância de Jesus e A Vida Escolar de Jesus. Ambientada em algum lugar parecido com a Espanha, em alguma época indeterminada, talvez uma realidade paralela, a trilogia segue os passos de uma criança especialmente talentosa, bonita, carismática, falante e misteriosa - como Cristo pode ter sido.
Porém, se os dois primeiros livros trazem indícios de alguma esperança, o terceiro, desde o título, joga água no vinho. E não espere pela ressurreição. O romance é cheio de acontecimentos singulares e inexplicados, não faz nenhuma questão de revelar significados escondidos em suas parábolas e nos deixa, ao fim, com o extremo sentimento de orfandade - orfandade que David reinvindica o tempo todo, quando nos lembra, através de suas atitudes inusitadas e do fascínio que projeta em todos ao redor, que não é daqui. “Por que estou aqui? O que é aqui?”, ele repete, várias vezes.
O evangelho segundo John Maxwell Coetzee não traz perdão, bem-aventurança, compaixão, trégua, paz nem esperança que o bem vença o mal no juízo final - traz somente (e este talvez seja o milagre deste livro) a excruciante sensação de solidão de quem sabe que não há antes nem depois nesse vale de lágrimas. Como personagem quixotesco (David é obcecado pelo livro de Cervantes, que decorou inteiro), este Jesus não vence os moinhos de vento nem alcança nenhuma Dulcineia: seu destino é oferecer metáforas cujos sentidos escapam não só a nós, como a si mesmo.
Questões provocadas mas nunca respondidas são parte do superpoder do escritor sul-africano. Evocar o silêncio, criar o silêncio, estabelecer comunicação através do silêncio é uma arte que gente como Miles Davis, Antonioni e Niemeyer conheciam bem: a arte de dizer através da lacuna, da falta, do vazio. Ao trazer sucessivamente tantos mistérios, Coetzee usa uma técnica praticada em sala de aula - fazer silêncio coloca a plateia na palma da mão. É comum observar em seus livros os personagens revelarem seu poder não através da fala, mas do silêncio.
No caso deste romance, um silêncio engasgado - um silêncio que Coetzee vem acalentando há décadas. Ler a obra através da biografia nunca deve ser a única estratégia de leitura - mas deixá-la de lado tampouco me parece inteligente. Durante A Morte de Jesus, não há como não se lembrar das tragédias que acometeram o Nobel: a morte da ex-mulher Philippa; a depressão e a epilepsia da filha Gisela; e a morte do filho Nicolas, aos 22 anos.
Disse que este livro, ao contrário do Evangelho, não traz perdão, bem-aventurança, compaixão, trégua, paz nem esperança: mas decerto traz um retrato do amor incondicional. Carregar o personagem David de mistérios o move para o centro gravitacional da narrativa. Mas é o compromisso inegociável que Simón firma com o pequeno órfão que ilumina o enredo da trilogia. Na literatura recente, um compromisso de devoção só comparável àquele que movimenta A Estrada, de Cormac McCarthy.
Um belo livro, que deveria vir acompanhado de uma caixa de lenços.
NÃO ME VENHA COM CHORUMELAS
Papo reto: 99% das autoficções não passam de chorumelas mal-ajambradas. Um fiapo de enredo rodeado de flunfas por todos os lados. (Flunfa é a substância quase imaterial que habita as dobrinhas do teu umbigo.) Mas, à parte os textões chochos, capengas, mancos, anêmicos, frágeis e inconsistentes que rolam por aí, existe literatura sendo feita aqui a honrar a torre de Montaigne. (Aliás, na Morel 4 tem uma excelente reportagem de J.R. Duran xeretando o lar do inventor da forma ensaio.)
Em Saia da Frente do Meu Sol (Autêntica), o carioca Felipe Charbel vai reconstituindo a vida de um tio enigmático através de cartas, fotografias e sobras de lembranças de familiares, até descobrir um segredo guardado durante anos no armário. Cristalizada nos Ensaios, a escrita ensaística é meia-irmã da autoficção - gênero em que as três figuras da narração, autor, narrador e personagem, confluem na mesma. O ensaio aproxima, distancia, vai e vem, negaceia e oferece, em um jogo típico de quem está buscando uma verdade - mas não sabe exatamente onde vai dar esse jogo. Com isso, cria uma identificação com o leitor. E é o que ocorre aqui: o tal segredo, ainda que tão particular e íntimo, é o tipo de coisa oculta nos armários de zilhões de famílias.
Em 134 páginas bem dosadas entre melancolia e bom-humor, misturando memórias e reflexões sutis sobre a arte de escrever e historiar, Charbel exercita uma lição de Pierre Michon, autor de Vidas Minúsculas: “falar dos outros é falar de si mesmo”. O tal “o que Frederico me diz de Francisco me diz mais de Frederico do que de Francisco”. É a chamada “virada etnográfica”, no dizer de Diana Klinger em seu Escritas de Si, Escritas do Outro (7Letras): quando o narrador, mais interessado no mundo exterior do que em ostentar a inócua vaidade, acaba revelando-se ao investigar, com honestidade e empatia, a vida dos outros.
Algo que autoras como Annie Ernaux e Rachel Cusk praticam à perfeição (e aqui tem um belo ensaio da canadense sobre a francesa). Ao contrário do que fazem artistas como o Coetzee, distribuidor de silêncios, “a tarefa do historiador é preencher vazios”: Charbel foi moldando as lacunas familiares para recriar os contornos de uma existência esquecida.
UM BOLAÑO SUBSAARIANO
Pra mim 2023 já acabou e quem levou foi o incrível livro de Mohammed Mbougar Sarr, 33, primeiro escritor subsaariano a ganhar o Goncourt, maior prêmio literário da França. Em A Mais Recôndita Memória dos Homens (Fósforo), Sarr participa de uma linhagem literária subterrânea: um escritor perdido, um livro perdido. Há quem afirme que Homero não existiu, ou que Shakespeare foi só um pseudônimo do conde de Oxford ou de outro autor contemporâneo, Christopher Marlowe (que é personagem do filme Only Lovers Left Alive, de Jim Jarmusch).
Em Vastas Emoções Pensamentos Imperfeitos, Rubem Fonseca, que também não deixou de ser um autor misterioso, criava a história de um cineasta que investigava em Berlim um romance perdido de Isaac Bábel. O enigmático B. Traven, autor de Tesouro de Sierra Madre, seria um nome falso, não há dados suficientes sobre sua morte, e há teorias conspirando que ele seria apenas o pseudônimo dos autores Jack London, Ambrose Bierce ou Arthur Cravan.
Autor de Cantos de Maldoror, o franco-uruguaio Isidore Ducasse, dito Conde de Lautréamont, morreu em circunstâncias misteriosas em Paris - e esta estranheza influenciou todo o movimento surrealista. Roberto Bolaño, em Os Detetives Selvagens, narra a aventura dos poetas fictícios Arturo Belano e Ulises Lima em busca do paradeiro da também fictícia autora Cesárea Tinajero no deserto de Sonora; em sua obra máxima, 2666, Bolaño imagina o mais poderoso autor de todos os tempos, o inventado Benno von Archimboldi, que teria deixado um último livro antes de desaparecer, no México ou na Europa (nunca saberemos, já que Bolaño não concluiu sua maravilha).
E é uma busca parecida que empreende o jovem escritor fictício Diégane Latyr Faye, ao ler o impressionante O Labirinto do Inumano, obra-prima do obscuro autor senegalês T.C. Elimane: seria pseudônimo de outro escritor, existiu, não existiu? Como Bolaño, autor que reconhecidamente o inspira - tirou o título de uma epígrafe do chileno - , o senegalês cria todo um sistema literário ficcional, em que escritores, leitores, críticos, revistas, jornais e universidades gravitam ao redor do misterioso livro do “Rimbaud negro”.
Nesta encruza de histórias e História, Faye chega até mesmo a ambientar Elimane na Argentina de Borges, onde o senegalês vira amigo de Gombrowicz e Sábato - e participa de festinhas íntimas com as endiabradas irmãs Victoria e Silvina Ocampo. Ah, sim: além de todo o talento fabulístico, Sarr domina a rara arte de descrever cenas de sexo. Oh-la-la.
ESTE NÃO AFUNDA
Quer aproveitar o inverno para esquentar tua escrita? Meu curso Submarino começa nesta quinta, 6-7, e segue em 6 encontros até 10-8. Via zoom, das 19h30 às 22h30, falo especialmente de autores contemporâneos pra fazer você praticar as formas breves: cena, crônica, microconto, carta, conto-ensaio. Há bolsas para professores, mestrandos e graduandos. Mais detalhes: me escreva aqui.
Gracias pela leitura,
abraços
Ronaldo Bressane