O pirulito do Chico & outros poemas.
Luisa Sonza, Barbie, lírica egípcia & grega + dicas improváveis de leitura
Ligações Perigosas
Agito no Egito: o hyperpop da Internet e a canção de amor do Nilo.
No momento em que escrevo, “Chico” é a canção de amor mais falada do Brasil (talvez no momento em que você me leia já seja outra; o pop não poupa ninguém). Nunca tinha ouvido falar em Luiza Sonza nem Chico Moedas até esbarrar num post da ex-rede do passarinho. Estava no meio da leitura de “Passarinheira”, poema transcriado por Guilherme Gontijo Flores a partir de hieróglifos do século XIII ao XI de antes de Cristo. Fui pesquisar e, assim como o poema egípcio-brasiliense, descobri que a canção da gaúcha-paulistana também leva a assinatura de muitas pessoas.
Um pouco de contexto. Quando “Passarinheira” foi criado, andavam sobre a Terra tipos como Ramsés II e Moisés I. A Acrópole de Atenas estava sendo erguida, a civilização olmeca despontava no México, chegava ao fim a Idade de Bronze e os chineses recém começavam a escrever dentro de seus biscoitos da sorte (até hoje é um mistério como conseguem escrever lá dentro). E o Spotify da época hitava isso:
Aqui começa um canto de alegrar o coração
a beleza da tua irmã • a amada do teu coração • quando volta do campo •
meu irmão meu amado • o coração anseia teu amor •
com tudo que você gerou •
e pra você eu conto • repare no que aconteceu •
eu acabei de armar uma arapuca • o laço numa mão •
noutra a gaiola • junto ao bastão •
todos os pássaros de Punt • pousam em Kemet •
perfumados na mirra •
vem o primeiro • e pega isca •
o seu olor chegou de Punt • a garra ungiu de bálsamo •
meu coração teu busca • vamos soltá-lo juntos •
se com você estou a sós • escute a voz do seu chamado •
do meu querido ungido em bálsamo •
você aqui comigo • enquanto tramo esta arapuca •
sair ao campo é alegria • pra quem o ama
(...)
clama a voz da andorinha • amanheceu • você não vai pra casa? •
pare seu passarinho • pare de censurar •
na cama achei o meu irmão • o coração transborda de alegria •
dizemos um ao outro • jamais vou me afastar •
a minha mão na tua mão • passeia leve •
vou com você • ver a beleza deste mundo •
sou pra ele a primeira das mulheres • nunca me fere o coração
(...)
encaro a porta à vista do jardim • lá vem o meu irmão •
olho na estrada e ouvido atento • espero quem despreza •
eu fiz do amor do irmão • meu único propósito •
por causa dele • o coração não cala •
(...)
No fascinante posfácio a Seu Dedo É Flor de Lótus – Poemas de Amor do Antigo Egito (Editora 34), Flores conta como há uns 12 anos se apaixonou por um poema egípcio (que já havia passado por vários tradutores) até trabalhar duro pra chegar a resultados como a versão acima. Além de ter estudado egípcio e se debruçado sobre hieróglifos, Flores usou como base muitas traduções diferentes, em várias línguas, transcritas ao longo de séculos, e buscou a fluidez da canção popular brasileira como parâmetro para a recriação dos versos do povo das pirâmides.
Flores é herdeiro da tradição transcriadora do paranaense Paulo Leminski, que bebeu (muito) na fonte dos paulistanos concretistas quando verteram Homero ao português. Melhor diria “pretoguês”, na lembrança de outro mestre paranaense, Caetano Galindo, no indispensável Latim em Pó, porque a língua falada no Brasil não existiria sem a afrodiáspora pelo subcontinente. A propósito, “Punt” poderia ser uma região paradisíaca no Sudão, e “Kemet” era o real nome antigo do Egito, e “minha irmã” e “meu irmão” é como os egípcios chamavam seus contatinhos.
Como na lírica do Nilo, nunca saberemos se existe um único autor para os versos de Luisa Sonza. Só se sabe que o eu-lírico milenar fazia a egípcia ao performar a metáfora da moça que arma arapucas pro passarinho amado. “A garra ungiu de bálsamo” alude ao mecanismo das armadilhas para aves de então, que usavam um óleo ou ungüento pra, hum, melecar o passarinho e grudá-lo. Em poesia, o termo “bálsamo” pode desde nadar no campo semântico do perfume quanto na lubrificação feminina ou no esperma masculino, passando por birita, remédio ou cura milagrosa. O que me lembra outra metáfora sexual da Sonza, “Campo de morango”: “Vai tomar do meu suco, é só lamber devagar/.../ Vou tomar do teu suco, eu vou lamber devagar”.
Sonza, que de sonsa não tem nada, exercita a estética da sampleagem ao roubar os versos “Se acaso me quiseres” e “sou dessas mulheres” da canção “Folhetim”, de Chico Buarque, homônimo do seu muso – uma canção escrita sob eu-lírico feminino. A expressão “estética da sampleagem”, referindo a criação à roda de fragmentos alheios, é invenção de outro Francisco, o Xico Sá. Genial aqui é que a sampleagem toda foi subvertida por uma mulher para criar uma ode ao namorado de ocasião – um carioca esperto que exerce o fabuloso ofício de ganhar dinheiro com bitcoin, daí seu vulgo, Chico Moedas. Bom, pelo menos a Luisa não está saindo com o Faraó do Bitcoin, ufa.
Como na canção de Sonza, o poema egípcio transcriado por Flores exalta a monogamia (“dizemos um ao outro • jamais vou me afastar • a minha mão na tua mão (...) sou pra ele a primeira das mulheres • nunca me fere o coração”). Mas a moderna diva propõe uma monogamia mais comunista, em que o privado (lar) se mistura ao público (bar), o amor doméstico (“tomo o teu partido”) se soma ao comunitário (“debato política”), podendo até ser dividido com umas e outros:
(...)
Pode fazer a sua fumaça
o Bar da Cachaça vai ser nosso lar
E, Chico, se tu me quiseres
debato política, tomo o teu partido
E se for pra repartir o amor
que reparta comigo
Em sua coluna no Farofafá, o crítico de música Pedro Alexandre Sanches recria toda a multipolar teia de citações do álbum Escândalo Íntimo (título sagaz e buarquemente proparoxítono, indicando a dissolução da privacidade exposta às vísceras nas redes sociais, comportamento típico da sociedade do espetáculo). Sem indulgência, mas também sem afetação, o crítico entende que o hyperpop de Luiza Sonza é um produto industrial da música comercial contemporânea (tanto quanto o filme Barbie e sua multidão de referências pode ser um filme “autoral” de Greta Gerwig, conforme meu ensaio no fim desta newsletter).
“Escândalo Íntimo tem sido comprado como trabalho hiper-autoral de Luísa, feito difícil de alcançar em tempos de música hiper-industrial. A maioria das faixas do álbum é assinada por Sonza com mais sete, oito ou dez parceiros, no empilhamento de tijolos musicais pré-moldados que caracteriza o pop industrial atual (...) A automatização mata qualquer voo autoral, o que se evidencia na maior fragilidade do pop industrial, reproduzida em Escândalo Íntimo: salvo exceções esparsas, os versos de Luísa (e seu exército) são muitas vezes carentes de poesia, assemelhando-se mais a um paredão de palavras-tijolos coalhadas de lugares-comuns. Ainda assim, as letras formam o setor mais pessoal e autoral do álbum.”
Em Um Brinde aos Mortos: Histórias Daqueles Que Ficam (Edições n-1), a ensaísta belga Vinciane Despret evoca o filósofo Etienne Souriau para afirmar que uma obra de arte é uma trama de criações, mais que fruto de criação original, 100% individual (mito romântico, oras). “Fazer de uma história uma matriz narrativa. Uma máquina de fazer histórias pouco a pouco, uma matriz de histórias que se fabricam no começo das anteriores e que, assim, conectam-se umas com as outras, não seguindo um fio, mas de maneira a formar uma teia”, ela sugere.
“Quem é o autor de uma obra? Souriau diz que o artista nunca é o único autor, ‘é o instaurador de uma obra que chega até ele, mas que sem ele nunca efetuaria sua existência’. O modo de existência da ‘obra a ser feita’ não permite decidir entre aqueles, artistas ou obras, que poderiam reivindicar a verdadeira origem: o escultor ou a escultura, o poeta ou o poema, o pintor ou o quadro? A obra em busca de existência chama o pintor, o poeta ou o escultor, e este vai se dedicar a levá-la à sua plena realização para concluí-la como obra. Em outros termos, o quadro, a escultura ou o poema a serem feitos exigem uma existência; o artista, e é isso que define o seu papel e suas obrigações, tem acesso a esse pedido e vai explorar a partir dele e responder ou, mais precisamente, tornar-se capaz de responder ao que ele exige. Isso é ‘instaurar’ uma obra, conduzi-la de ‘obra a ser feita’ à sua existência de obra concluída.”
Teria sido Homero um único mortal, serão os versos de Luisa Sonza lembrados algum dia? Afinal, qual a diferença entre dizer “seu dedo é flor de lótus” e “eu prefiro seu pirulito”? Se daqui a 3 mil anos estaremos discutindo as pérolas e putarias da diva de Tuparendi (RS), não faço a menor ideia; não sei nem o que comi ontem. Por ora, chutaria que o futuro da gaúcha passarinheira pode espelhar o passado da anônima egípcia que, num barraco à margem do Nilo ou no cantinho mais escuro de uma pirâmide, soprou sacanagens ao faraó do seu coração até que tenha ressuscitado, featured by inúmeros tradutores, instaurada pela pena de um Guilherme Gontijo Flores. Depois dessa mistura do Brasil com o Egito, só torço pra que, daqui a 3 mil anos, o Bar da Cachaça continue sendo o nosso lar.
PS> Que beleza essa crônica do Leo Aversa dedicada ao amor de Chico e Luisa. Os boatos sobre a morte da crônica em jornal foram exagerados.
#pilhadeleiturasperdidas
No momento em que escrevo, estou empacotando os milhares de livros da minha biblioteca. Todo mundo que fez uma mudança conhece o agridoce sentimento: a melancolia em trocar um CEP querido mais a euforia de desbravar um novo quarteirão. No caso deste nômade que já passou por 27 GPS diferentes, a ansiedade é temperada pela pergunta: qual será o meu CEP além do próximo CEP? Porque tenho a sensação de que ainda não será meu penúltimo lar (supondo-se o último como a cidade dos pés-juntos). Talvez, como disse Steinbeck, “eu tenha casas em toda parte”, muitas das quais “ainda nem conheço. Talvez seja por isso que sou inquieto. Ainda não conheci todas as minhas casas”.
A citação acima é roubada do prefácio de Ioga Pra Quem Não Está Nem Aí, de Geoff Dyer (Cia das Letras). Reúne uma coleção de ensaios de Dyer sobre variados lugares em que esteve combinando informações aleatórias com seu humor irresistível. O último ensaio deste livro se passa em Black Rock City – o GPS do Burning Man. Sugiro demais sua leitura hoje, quando o festival se tornou um ninho de playboys hipócritas que vão torrar milhares de dólares no deserto pra pagar de libertários. Na edição de 2023, enlameada por um furacão imprevisto, condizente com o apocalipse climático, Black Rock City virou cosplay do Mad Max (aqui a Wired, bíblia do Vale do Silício, mostra a derrocada do modelo). Mas Dyer que visitou o festival bem antes de virar modinha:
“No verão de 1990, um anúncio num jornal de circulação restrita em San Francisco propunha uma ‘Viagem para a Zona’, e mais: ‘rumo ao desconhecido’. Oitenta e nove pessoas se encontraram no campo de futebol do Golden Gate Park e seguiram de carro, no meio da noite, para o Deserto de Black Rock, em Nevada. Na manhã seguinte, viram-se diante de uma vasta extensão de um vazio branco e plano. Dizer que havia montanhas ou colinas ao longe não faz sentido, porque tudo lá fica muito longe. A playa é pura distância.
Alguém traçou uma longa linha na playa e disse: ‘Do outro lado desta linha tudo é diferente’. E então os oitenta e nove participantes deram-se as mãos e atravessaram a linha, ingressando na Zona (...)
Black Rock City é muitas vezes classificada de Zona Autônoma Temporária. Ideia subversiva de Hakim Bey, a ZAT – ‘uma sublevação que não enfrenta diretamente o Estado, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e depois se dissolve para tornar a se formar mais adiante noutro lugar e noutro momento antes que o Estado possa esmagá-la’ – não ocorre em lugar nenhuym de maneira mais delirante que Black Rock City. E digo isso literalmente. Às placas ‘Bem-vindo a Lugar Nenhum’ que se encontram em Burning Man trazem um hífen implícito, de maneira que a palavra inglesa equivale, Nowhere, se transforma em Now-here, Now-here, agora-aqui, agora-aqui.
É irônico voltar a este ensaio hoje, quando aqueles 89 libertários dos anos 1990 se transformaram em 80 mil carros espalhando poluição por um deserto pantanoso, a cinco mil dólares por cabeça (havia festas de bilionários cobrando 20 mil). No ensaio, entende-se que Dyer viveu loucamente o Verão do Amor dos anos 1990, movido a ecstasy, música eletrônica experimental, internet experimental, vida experimental. O que tem pra hoje: MDMA malhado com Fentanyl, Alok juntando um milhão em Copacabana e a utopia da internet livre dando na voragem do cancelamento social e na angústia consumista do TikTok. Queimar um Homem no deserto já não significa mais nada além de um post a mais no Instagram que, mal alguém viu, já esqueceu.
O ogro que virou gato.
Cansado de procurar um livro massa pros pimpolhos? Em As Sete Vidas do Gato Jouralbo se descobre que o velho ogro Allan Sieber esconde um sujeito mais fofoleto que o olhar do Chico pra Luisa. Esta pequena joia em tons esmeralda da Bebel Books + Mandacaru conta as sete desventuras de um gato viralata com tudo o que uma criança curte: circo de pulga, influencer babaca, navio pirata, cocô de tubarão, ilha com vulcão, geólogo legal, nerd vacilão e menina gente-fina. A prova de que Allan está ficando adulto é ter bolado esse quadrinho infantil genial.
A vida é uma grande máquina de separação.
Um dos trechos comoventes de Ioga, de Emmanuel Carrère (trad. Mariana Delfini, Alfaguara), conta como o escritor foi participar de um curso de escrita criativa na pequena ilha grega de Leros. É um grupo pequeno, formado por três afegãos e um paquistanês, adolescentes, e uma professora americana. Os garotos chegaram ali em busca de um futuro possível, mas antes passaram pelo gigantesco campo de refugiados de Lesbos, que só em 2015 recebeu 800 mil pessoas fugindo da guerra e da fome, em sua maioria sírios e iraquianos.
Frederica, a professora, passa para eles a proposta “A noite antes da minha partida”, e os garotos contam histórias totalmente inacreditáveis, de tristes a aventurescas. Carrère se espanta com sua maturidade precoce: tão jovens e já sabem que “A vida é uma grande máquina de separação”. Uma passagem de cortar o coração deste romance que está no meu top5 de 2023.
Mas um campo de refugiados na ilha de Lesbos é um mote bom demais, triste demais para não ser glosado por um poeta sensível ao pulso da História. Felizmente, caiu nas mãos da mineira Ana Martins Marques. Em um longo poema que trabalha a cadência do ensaio em imagens fulgurantes, publicado na plaquete De Uma a Outra Ilha (Fósforo), Ana compara os fragmentos dos poemas de Safo - a escritora que deu fama à ilha de Lesbos - aos jovens que foram “lançados assim/ ao mar escuro/ com seus coletes alaranjados/ faiscando/ desabando depois na praia/ com o baque de um jornal/ arremessado sobre o muro/ por um motociclista apressado”.
Como se sabe, só um poema inteiro de Safo nos chegou lá do século III aC. “O mar não escolhe entre a nau/ e o naufrágio/ como para a primavera é indiferente/ o mel ou a abelha”, escreve Ana. O tempo também não escolhe qual poema vai chegar inteiro ao futuro. Mas, como diz Anne Carson, grande especialista em Safo, ler um poema da discípula de Afrodite, todo coalhado de buracos e colchetes, não deveria ser um drama – “colchetes implicam um espaço livre/ para a aventura da imaginação”. Assim também aconteceu com o aventura dos refugiados em Lesbos: “Aconteceu de as coisas se destruírem/ mas que algo delas não se destruísse/.../ Aconteceu de algo acontecer/ deixando um rastro do acontecido”.
O poeta tem um tanto de detetive: cria um sentido através de rastros.
No momento em que escrevo, como você deve ter percebido lá em cima, encontro-me em situação de mudança, com todas as despesas embutidas no processo. Assim, já que você chegou até aqui, que tal trocar sua assinatura grátis por uma assinatura parça? Ajude o escriba nômade a te ajudar a escolher o que ler e mande seu pix ;)
Barbárie contra Barbie.
A ironia do filme – que não é um filme – acaba funcionando ao contrário
Toda crítica é um fracasso, mas criticar Barbie é um fracasso melhor ainda, porque se “falem mal mas falem de mim” é o mandamento número 1 do marketing, eis o crítico aqui trabalhando de graça para a Mattel. Já aviso que adorei Barbie, contudo. É o tipo de obra perfeita pra interpretar. Como um espelho deformante de parque de diversões: cada um vê o que quer.
Afinal, o filme cor-de-rosa é a elevação ao estado da arte da obra como criação de uma corporação. Turning point na indústria do cinema, dá pra fazer um bolo de análises. Terceiro exemplar do corporate thriller – gênero que nos deu o tedioso Air e o divertido Tetris – a fazer sucesso em 2023, duvido que Barbie seja superado. Pois ao contrário de Air e Tetris, filmes que parecem filmes, Barbie não é um filme: é o próprio produto, em formato multiplex.
No começo houve o cinema de autor, depois apareceu o cinema da indústria: agora a indústria em si é o próprio autor. Chorem, Godard, Glauber e Paulo Emílio. Pra contar essa irônica aventura, ninguém melhor do que a maior representante da ironia, do cinismo e da autoparódia millenial: Greta Gerwig (e seu Ken-roteirista-pigmaleão, Noah Baumbach). O que era cinema de nicho nos anos 00 virou caixa de boneca nos anos 20. Nenhum indie escapa à tela faminta dos caubóis, e Frances Ha vai felizona à ginecologista, mas antes passa pelo Barbieverso.
O casal se saiu bem: criou o evento audiovisual do ano, tão irônico quanto icônico. Acusar o filme de ser superficial – qual a profundidade dos sentimentos de uma boneca? – é em si uma platitude superficial. “Há superfícies que transformam o fundo das coisas ao redor (...) A superfície é o que cai das coisas: que advém diretamente delas (...) como retalhos de uma casca de árvore (...) a casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore se exprime”, escreve Georges Didi-Huberman em Cascas (Editora 34).
O casal protagonista não podia ser mais perfeito. E a prova de que a indústria se metamorfoseia em demiurga é a ironia em antagonizar Barbie com Oppenheimer, aliás vivido por Cillian Murphy, que é colega de Harley Queen no Asilo Arkham de Christopher Nolan. Hollywood é um grande metaverso. Nada tão psicótico quanto o sorriso plastificado de Margot Robbie criado para Harley Queen, a boneca que namorava o fascista Coringa.
E nada tão destituído de sexo quanto o Ken de Ryan Gosling, o verdadeiro cômico dessa toy story. Mero apêndice da Barbie, o pobre macho não é só emasculado de virilidade – como reclamam os tiozões crentes ofendidos com a masculinidade frágil do boneco que balançaria as bases do patriarcado redpill. A escalação de Gosling lembra que ele foi o opaco androide de 2049, a continuação de Blade Runner: um ser emasculado de humanidade.
Philip K. Dick já havia delineado o conceito no livro que originou o filme, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?. Androides são como zumbis e vampiros. Figuras arquetípicas, mitos ocos, são seres incriados – não nasceram, portanto não podem morrer. Em seu limbo rosa, Gerwig sacou que o grande medo de Barbie é morrer. É a morte que traz sentido à vida, então como ser feliz, se imortal? A alternativa é Barbie renunciar seu posto na Barbie Land e, no mundo real, ganhar uma vagina. Eis o ambíguo final feliz, irônico e contemporizador, que contenta a todos, de adolescentes descerebradas a críticos chatinhos (bem, imagino que as mulheres trans não devem ter gostado...).
“Quando o nosso exército atingiu os altos joelhos de Marilyn Monroe um jorro de fetos transparentes foi lançado para fora de uma enorme porta peluda e todos nós gritamos de medo e furor e avançamos com ímpeto contra o inimigo”, escreve José Agrippino de Paula em PanAmérica, o livro mais citado e menos lido dos últimos 60 anos. O fundador da Tropicália, em sua obra-prima, conta a história de um diretor de cinema anônimo que se apaixona por uma Marilyn Monroe que não tem nenhuma substância além de sua superfície.
No fim de PanAmérica, Marilyn se torna um monstro mitológico, e ao lado da Estátua da Liberdade, destrói todas as cidades-cenários que aparecem no romance, em um grande apocalipse cujas figuras de Hitler, Martin Luther King, Kennedy, De Gaulle e Karl Marx são envoltas numa nuvem de napalm. Na visão de Agrippino, Marilyn – quintessência do corpo perfeito de Barbie nos anos 1950 – seria a Besta 666, a revolucionária superfície que arrancaria qualquer conteúdo do mundo, a absorção do fundo pela figura, a planificação de todo o inconsciente, a barbárie que mastiga a cultura. O horror, o horror. Não deixa de ser irônico que, daqui da periferia do capitalismo, um artista esquizofrênico tivesse profetizado que o fim do capitalismo seria vendido como um tíquete de cinema. Já dizia David Foster Wallace:
“Sarcasmo, paródia, absurdismo e ironia são ótimas maneiras de arrancar a máscara das coisas e mostrar a realidade desagradável por trás delas. O problema é que, uma vez que as regras da arte são desmascaradas, e uma vez que as realidades desagradáveis que a ironia diagnostica são reveladas, o que fazemos? A ironia é útil para desmascarar ilusões, mas grande parte do desmascaramento de ilusões nos EUA foi feita e refeita (...) Só queremos continuar ridicularizando as coisas. A ironia pós-moderna e o cinismo tornaram-se um fim em si mesmos, uma medida de sofisticação e astúcia literárias. Poucos artistas se atrevem a falar sobre maneiras de trabalhar para redimir o que está errado, porque pareceriam sentimentais e ingênuos para os céticos cansados. A ironia passou de libertadora para aprisionadora. Como Lewis Hyde disse, a ironia não passa da canção do prisioneiro que aprendeu a amar sua jaula.”
Ao contrário da apocalíptica barbie Marylin Monroe de Agrippino, munida de uma revolucionária vagina dentata, a conformista Barbie de Gerwig/Baumbach/Mattel apenas sonha em ter uma vagina – não sabemos se para ter prazer ou ter filhos. DFW já denunciava que a ironia onipresente no pós-moderno seria engolida pela sociedade de consumo e transformada em mercadoria. Eis agora meninas de 12 anos rindo com a ironia deste vale das bonecas: se a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante, a ironia só pode ser um donut plastificado consumido com uma Coca. No Manifesto do Pós-Capitalismo que é Barbie, a ironia é a canção da boneca que aprendeu a amar sua caixa.
[Originalmente publicado na revista Gama. A imagem acima é da Amanda Miranda]
Gracias pela leitura,
Ronaldo Bressane
Não tenho palavras para expressar o quanto esse texto me deixou fascinada. São tantas ligações que você faz e de maneira tão fluída que é como se elas já existissem em algum lugar esperando para serem manifestadas.
Sou fã da Sonza, quero dizer