O silêncio fala mais alto
Em Fim de Poema, Juan Tallón biografa quatro poetas suicidas: Cesare Pavese, Anne Sexton, Alejandra Pizarnik e Gabriel Ferrater
Tem uma categoria de livros que daria o nome “livros pra presentear”. São obras que tenho vontade de estocar, para ter à mão e dar a um possível aniversariante quando não sei o que oferecer, mas sei que aquilo é bom como um pão bem feito e fresco. São livros inabalados a modas ou tendências culturais ou de mercado ou acadêmicas – não chegam exatamente a ser clássicos, ou não ainda. Não necessariamente campeões de vendas, nem estão em todas as listas, talvez não sejam adaptáveis ao audiovisual. Apenas oferecem a alegria genuína e imediata do prazer da linguagem, e uma espécie de compromisso com o leitor, um compromisso de não usar máscaras, subterfúgios ou salamalaques inúteis. São livros que sei que uma pessoa com gosto pela literatura, não necessariamente intelectual, vai adorar.
São livros como um filme do Nanni Moretti, em que nunca se sabe exatamente o que vai acontecer, mas que, quando acontecer, você vai gostar de estar lá. Obras curtas, entre 150 e 200 páginas, como Ioga Pra Quem Não Está Nem Aí, de Geoff Dyer, As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg, A Esperança do Mundo, de Albert Camus, Bonsai, de Alejandro Zambra, Retrato do Artista Enquanto Jovem Cão, de Dylan Thomas, Breve História do Espírito, de Sérgio Sant’Anna, Limonov, de Emmanuel Carrère, Amores Difíceis, de Italo Calvino, Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, O Frango Ensopado da Minha Mãe, de Nina Horta, mais meia dúzia. A essa distinta #pilhadeleiturasperdidas somo agora Fim de Poema, do espanhol Juan Tallón (tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina, editora Poente).
O livro tem uma premissa original: recriar os últimos momentos de quatro escritores suicidas – o italiano Cesare Pavese, a estadunidense Anne Sexton, a argentina Alejandra Pizarnik e o catalão Gabriel Ferrater. A esta altura você deve estar se perguntando por que presentear alguém com um livro desses... Partindo do princípio de que presenteio com coisas que eu mesmo gostaria de ganhar, o livro forma no subgênero da biografia imaginada, que muito me interessa.
Tem uma similaridade com obras que sempre releio: Todo Aquele Jazz, de Geoff Dyer, Quando Deixamos de Entender o Mundo e MANIAC, de Benjamin Labatut, Eu Não Sou Jackson Pollock, de John Haskell, e, vá lá, Inverdades, de André Sant’Anna (estou aqui focando nas ficções do mineiro sobre Jimi Hendrix, Miles Davis e Rolling Stones, mas a linguagem única de Sant’Anna puxariam este subgênero para uma prateleira mais agrippiniana... fica para outro texto).
No livro de Dyer, temos flagrantes das vidas de jazzistas como Chet Baker e Thelonious Monk – Baker, por exemplo, é entrevisto no instante em que acorda do lado de uma namorada, já pensando em deixá-la (Dyer usa este momento como uma metáfora para a dicção do trompete e da voz de Baker: mal se anuncia, já parte). Nos de Labatut, entrelaça-se (e exagera-se um tantinho) as vidas de cientistas que mudaram a História ao partir da teoria da relatividade de Einstein para descobertas impressionantes (que levaram uns à glória, outros à ruína e alguns à loucura).
Porém, em vez de misturar narrativas ou separá-las estanques, Tallón foca as horas finais dos quatro escritores através de capítulos curtos e intercalados em um livro enxuto e denso, de 132 páginas. É uma estrutura engenhosa, posto que nos faz espelhar a melancolia de Pavese às obsessões de Sexton, a bipolaridade de Pizarnik ao alcoolismo de Ferrater. São quatro vidas bem diferentes, no entanto – embora todas turvas pelo espectro do sofrimento psíquico, capturadas no momento de seu paroxismo. É possível mudar o percurso da leitura – ler só os capítulos referentes a um autor, depois pular para outro, ou ler os capítulos de trás pra frente. Afinal, você já sabe mesmo como vai ser o fim...
“Virá a morte e terá teus olhos”, começa o famoso poema de Pavese dedicado à namorada Connie: ler estas histórias – todas narradas na terceira pessoa – nos traz a sensação de que estamos observando tais personagens do ponto de vista da Morte. Ou da perspectiva dos inúteis e compassivos anjos de Wim Wenders. Ou da altura do olhar do Google Street View, conforme Dyer sugere neste belo ensaio na revista Zum, “inevitável e acidental como a própria morte”.
O voyeurismo é o comportamento central do nosso tempo – ao lado de seu gêmeo, o exibicionismo, ambos filhos do narcisismo. Talvez o espelho seja mesmo o motor do capitalismo, como inferimos de A Cultura do Narcisismo, de Christopher Lasch (Fósforo). E temos aqui quatro escritores confessionais. Pavese foi um dos primeiros autores do século 20 a tornar o diário uma obra de arte em si, antes de Ricardo Piglia e Susan Sontag. Também cultora de diários, Pizarnik chegou a descrever suas internações em clínicas psiquiátricas. Sexton forma no conjunto de poetas bostonianos que, como Sylvia Plath e Robert Lowell, tentavam calcar em versos sua experiência direta. E o catalão Ferrater – infelizmente nada traduzido por aqui – fazia versos objetivos sobre cenas cotidianas e seus embates com mulheres. Ainda nos 1970, Lasch capturou a tendência literária da autoficção – hoje onipresente, dos reality shows de perfis nas redes sociais às sagas de Annie Ernaux e Karl Öve Knausgard –, mas não a via com bons olhos:
“A atual preocupação com a autodescoberta, o crescimento psíquico e os encontros pessoais íntimos indicam um grau jamais visto de ensimesmamento e um romanticismo descontrolado. Na verdade, o culto da intimidade não é resultado da afirmação da personalidade, mas de seu colapso [grifo meu]. Longe de glorificarem o self, poetas e romancistas de hoje narram sua desintegração. As terapias dedicadas as tratar eus despedaçados transmitem a mesma mensagem.”
A desintegração da personalidade, a impossível comunhão com o semelhante, a dificuldade em lidar com o sofrimento advindo de doenças mentais (depressão, bipolaridade, esquizofrenia, drogadição), a incompreensão das próprias emoções, a inabilidade em criar ou manter laços afetivos, o desinteresse com o diferente, a onipresença de uma falta de sentido em continuar... Mas, sobretudo, um lento e letal apaixonamento pela ideia de não mais existir: um projeto acalentado ternamente, e por fim abraçado. Eis algumas das coincidências nas obras e nas escritas desse quarteto, talvez unidas sob este norte criticado por Lasch: a investigação da intimidade não resultou na afirmação de suas personalidades, mas sim em seu colapso.
E aqui voltamos ao voyeurismo. Se a glória seria a afirmação da personalidade contemporânea em seu ápice, o que dizer do fracasso? Na época em que a revolução é televisionada à náusea, a derrota também deve ganhar o máximo de holofote. Não queremos só ver a fama – ansiamos presenciar a lama. Já houve suicídios transmitidos ao vivo nas redes sociais, e recentemente assistimos à derrocada de um youtuber popular quase se despedir em público antes de apagar a luz (mas a autoextinção não se deu em solitário: PC Siqueira matou-se na frente da namorada).
Snuff movies, o gênero de pornô em que uma morte é captada pela câmera ao vivo, hoje são banalmente transmitidos por programas policiais e super replicados nas redes (sempre antecedidos da hipócrita mensagem “cuidado, imagens gráficas”). A representação da morte, antes instância íntima e inacessível, é tão fácil de ser obtida que qualquer criança já deve ter visto em sua conta no TikTok. E imediatamente esquecida, tão logo o scroll infinito traz o próximo vídeo de gatinho, a dancinha seguinte, a nova meme.
Resta a literatura – este estranho país da intimidade, em que uma voz se dirige unicamente a outra voz. Qualquer leitor sabe que a última linha de um escritor suicida não foi bem aquela que desenhou em seu bilhete de despedida (“Perdoo a todos e a todos peço perdão. Não façam muito estardalhaço”, anotou Pavese), ou em seu último verso (“Não quero ir / nada além / que até o fundo”, rabiscou Pizarnik). Foi o seu ponto final: o gás, o comprimido, a corda, a espingarda, a fumaça do escapamento.
(Mas será que Ana Cristina Cesar e Victor Heringer tiveram a autoconsciência do voo como última escrita? Jamais saberemos. De fato, todavia, como gesto carregado de intenção, na encruzilhada entre vida e arte as janelas de Ana e Victor emolduram suas páginas finais. E nossa doença contemporânea exige espiar o mundo através dessas janelas. Queremos loucamente estar ali, lamber o vidro que separa antes e eternidade, comungar desta esfera tão íntima quanto súbita. É a fronteira final da sociedade de espetáculo: espionar a morte alheia na hora exata em que se instaura a pós-morte.)
Jornalista, Tallón sabe disso, daí a maestria de seu livrinho. O catalão escreve do ponto de vista da morte, e como sabe qualquer aprendiz de Brás Cubas, a caveira risonha nos torna a todos ridículos. Daí sua escrita não se eximir do bom humor. Nas suas Seis Propostas, Italo Calvino ensinava que a leveza é uma qualidade importante frente ao natural peso do mundo: a entropia é pesada - daí o leve ser contraintuitivo e muito mais desafiador (“A gente não brinca porque a vida é mole, a gente festeja porque a vida é dura”, samba Luis Antonio Simas).
Contra o solene e o severo, Tallón espalha anedotas saborosas, algumas misteriosas, muitas hilariantes. Como a história, lembrada por Pavese, dos poetas portugueses que durante anos se reuniam em um café mas nunca abriam a boca, atraindo a atenção dos turistas – só se dispersaram quando certo dia um deles disse “esse café está uma merda”. Ou a peça que Pizarnik pregava nos vizinhos barulhentos de cima, amarrando sapatos em duas vassouras e batendo no teto, fazendo-os se cagarem de medo. Ou o piano do hotel em que Pavese se hospeda e que toca sozinho. Ou Robert Lowell, lembrado por Sexton, enchendo a cara e dando vexame em uma festa na casa de Borges, em Buenos Aires, ao se atracar com uma convidada no banheiro, saindo de lá direto para um sanatório. Ou Beckett flagrado em um parque por Ferrater, amassando torrões de terra como se estivesse em uma peça. Ou André de Mandiargues assustando Octavio Paz com sua caligrafia horrível, segundo viu Pizarnik. Ou a tentativa de suicídio duplo de Sexton e Plath, quando foram visitar a cidade natal de Emily Dickinson: passaram uma noite enchendo as caveiras sobre os trilhos de trem em um túnel, mas o trem nunca veio – mais tarde, em uma ressaca monumental, as amigas descobriram que o trem havia descarrilado antes de chegar ao túnel.
O livro tece sutis relações entre os autores. Pizarnik ganha um livro de Ferrater, enviado por Julio Cortázar. O diário de Kafka (autor traduzido por Ferrater) que ela lê, o diário que escreve Pavese; ambos sofrendo de insônia. O alcoolismo de Ferrater e Sexton. O amor e o temor que Sexton e Pizarnik devotam a determinados objetos. A foto de Sexton encontrada no meio de um livro de Pavese. E cada autor é circulado por seus pares: Pavese está no mesmo sistema de Primo Levi, Calvino e Ginzburg, Pizarnik conversa com Cortázar, Paz e Calvino, Ferrater com Joan Brossa e Jaime Gil de Biedma, Sexton passeia com Plath, Lowell e Maxine Kumin. Narrativa de grandes solitários, contraditoriamente o livro constela uma multidão de paideumas.
Com um estilo que mescla frases curtas, secas e sincopadas a sentenças mais longas, temperadas com citações de textos dos próprios autores, tudo quase sempre narrado no pulsante presente do indicativo, Tallón alia as informações jornalísticas pontuais, advindas de pesquisas exaustivas e coordenadas com muita imaginação, a passagens líricas, em que demonstra o dom de captar a imagem imprevista:
“Ser poeta é ocupar os espaços de olhos fechados”, “seu coração tombou de lado, como se nas entranhas também houvesse acidentes de trânsito”, “a mala aberta no meio do aposento, como um homem assassinado pelas costas”, “a noite alta entra em casa como um ladrão”, “tudo encontraria seu lugar definitivo, como essas estradas que terminam perto do mar por falta de solo firme”.
Portanto essa “espécie de biografia das horas da morte”, no dizer de Bruna Beber no prefácio, me parece um presente perfeito. Sim, Tallón escreveu um livrinho que acaba mal, que tem lá seus momentos de delicada e funda tristeza; contudo, em seu registro ambíguo, mostra um quarteto de personagens firmemente (às vezes bambeando, no caso dos alcoólatras) atravessados por um projeto: assinar sua obra final. Tomam a vida com as próprias mãos. Como em O Deus Selvagem, daquele quase-suicida A. Alvarez, amigo de Sylvia Plath, Fim do Poema é um deserto que se percorre até descobrirmos que, do outro lado, só há mais contundentes Saaras.
Mas, ao contrário da celebração descerebrada do culto narcísico das redes sociais, encontramos nestes quatro cavaleiros um apocalipse íntimo, acolhedor e sábio. Falar sobre o suicídio evita o suicídio, e só por isso este livro já se faz necessário. Assim, mostrar esses poetas nos litorais de seu autossilenciamento me parece uma estratégia sagaz de Tallón, por torná-los mais vivos. “Poemas são feitos de objetos e vozes; coisa e presença”, lembra Beber. Para quem tem ouvidos de ouvir, o silêncio fala muito alto.