Cinco perguntas suculentas para Joca Reiners Terron.
1. Enquanto você escrevia Onde Pastam os Minotauros, o que alimentou tua escrita e o que jamais comeria antes de escrever? Sou daqueles que não se lembram nem do que comeram no café da manhã, mas que nunca se esquecem de quem serviu o prato. A jornada do escritor cinquentão tem sido cada vez mais árdua, e só posso agradecer pelo peixe aos alunos que se inscrevem nos meus cursos e aos editores que me passam trabalho.
2. Em literatura, você prefere o bife imaginado ou o bife realista? Nunca fiquei dois dias sem comer. Talvez um, mas não dois. Existe um aforismo mais ou menos conhecido que diz que, quando a morte se apresenta, já não estamos mais lá. A verdade é que vamos nos despedaçando ao longo da vida, até não restar nada.
3. "Os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as leis, as salsichas e os jornais", teria dito Bismarck. Trocando em miúdos, o mesmo pode ser dito dos livros? Bem, não há dúvida de que a literatura é uma torta bem recheada de vísceras. No entanto, ninguém sabe como é feito um livro. É um mistério.
4. O seu leitor tem que ter estômago forte para sua literatura ou um apetite sofisticado, incomum, fora do comum? Meus temas são banais. A morte, por exemplo, ou o esquecimento. Na verdade tenho lá minhas dúvidas se existe algum outro tema literário que não seja a morte.
5. O que é carne de primeira na literatura mundial? E o que é carne de última? Nas conversas sobre literatura fico observando as citações e morrendo por dentro, às vezes de vergonha, minha e alheia, pois, no que se refere à leitura, minhas lacunas são maiores e em maior número que a abundância. Então, quando alguém cita Tolstói ou Proust como suas grandes influências, eu penso em Stephen Dobyns ou Jerome Charyn. Os autores de que gosto são prolíficos e variados, escrevem poemas e quadrinhos, não são levados a sério (nos EUA ninguém dá muita pelota pro Charyn, por exemplo, que por outro lado é idolatrado na França), e também escrevem ensaios sobre temas esquisitos (Charyn sobre pingue-pongue, por exemplo, Dobyns sobre a decepção). Entre estar em primeiro lugar ou em último, vale sempre lembrar de John Le Carré, que ao ser perguntado por que, já rico e famoso, ainda escrevia, respondeu: "Quando a escrita vai bem, a grana não importa, e quando vai mal, a grana não ajuda".
O novo romance de Terron sai pela Todavia em 10 de julho. Trata-se de um thriller trapnejo que transforma em labirinto um matadouro no oeste - há bois contaminados, há agro-ogros, há ariadnes aracnídeas, há o horror da carne e o puro suco do pior do Brasil. Cuidado: depois de entrar, a história não vai querer sair da sua cabeça. Você pode morder um belo bifão da prosa substantiva do autor cuiabano na Morel 8.
Na Tábua: 90 autores em formatão.
Projeto de Paulo Scott e Fabio Zimbres sai pela Lote 42
A coleção de cartazes Na TáBUA, que agitou a cena cultural brasileira nos anos 2000, vira livro. Organizado pelo artista Fabio Zimbres e pelo escritor Paulo Scott, o projeto reuniu imagens e textos em pôsteres colados em cafés, bares, bibliotecas e restaurantes. Acima, um poema neocolonialista na minha página no livrão - que tem 192 páginas e formato 29,7cm por 21cm.
Na TáBUA vem com todos os cartazes originais, mais de 90 artistas: Adão Iturrusgarai, Alice Sant’Anna, Andréa del Fuego, Bruna Beber, Carla Barth, Carol Bensimon, Carola Saavedra, Chacal, Daniel Galera, Eloar Guazelli, Glauco Mattoso, Ivana Arruda Leite, Jaca, Joca Reiners Terron, JP Cuenca, Laerte, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Reinaldo Moraes, Rafael Coutinho, Rafael Sica, Xico Sá etc etc.
BOTA
Comprou uma bota, economia até de comer. Toma o ônibus lotado como carro com chofer. Faz bem ter a sacola nas vistas, sonho que se embala no colo. Quarenta minutos e desce onde acaba o asfalto. Saída do culto, torce que adivinhem o que leva. Sorri. Portãozinho range, mete a chave na porta. Palmas e bundas na tevê, filha caçula se distrai, e ela com a bota. Tira a sacola. Vai pro quarto se procurar no espelho, a filha achou um novo brinquedo. A bota dança. O saco sufoca a filha. [Carol Bensimon]
URSO-POLAR — RETROSPECTIVA
o urso-polar é um nadador
e um corredor capaz
o que o torna um caçador eficiente
tanto na terra quanto na água
o urso-polar é um narrador
e um corredor sagaz
o que o torna um caçador neurótico
tanto na terra quanto na água
o urso-polar é um narrador voraz
e detesta exercício
tomando mais de dez chopes por dia
está ficando deprimido e barrigudo
o urso-polar é um prosador em crise
e um cidadão consciente
fez doações para uma ONG espanhola
que defende os direitos dos poetas albinos
—
o urso-polar nunca liga a tevê
mas domingo assistiu a um programa excitante
sobre a culinária em Cingapura
desde então ele não pensa em mais nada
o urso-polar quer conhecer Cingapura
[Fabrício Corsaletti]
"O mais bacana do projeto foi mesmo poder convidar artistas que estavam no início de carreira (alguns eram completamente desconhecidos) e que depois viriam a se tornar grande referências", diz Scott. Na TáBUA captura uma afinidade entre os blogs da internet pré-redes sociais com os fanzines das décadas anteriores. Criou uma rede de artistas, difundindo trabalhos, chegando ao público pregado nos muros e paredes. “Vem do zine, vai pro blog e volta para o físico", afirma Zimbres. Editado pela Lote 42, o livro preserva a íntegra das publicações, incluindo a dimensão. A encadernação permite que as páginas sejam totalmente abertas. O projeto gráfico de Zimbres contempla uma sobrecapa (confira um vídeo do formato neste link). Na TáBUA vai ser lançada neste sábado 8 de julho na Ria Livraria, Vila Madalena, São Paulo.
Não-assunto da semana.
Não vou falar aqui da trombada de cantoras naquele comercial da montadora de automóveis - o escritor Ricardo Terto, em sua newsletter Praticamente Interessante, tratou do assunto com sagacidade. (Terto também colaborou na Morel, edição 04, em dupla com Oga Mendonça.)
“Não sei se Elis toparia participar do comercial, nem nunca vou saber. Também não cabe a mim dizer que relação uma pessoa deve ter com a memória de sua mãe, mas cabe a nós como sociedade superar o efeito da emoção e pensar que implicações existem na abertura da possibilidade de trabalhar desse modo a imagem de alguém morto.
Aos emocionados, entendo perfeitamente, mas compreenda que o horror também é uma emoção. E eu estou horrorizado com o futuro que estamos construindo para o mundo. Eu acho uma atrocidade a gente usar o argumento do ‘se achou ruim é só não ver’, ‘se achou ruim é só não consumir’, como se não consumir algo fosse a única oposição possível num mundo onde tudo é produto.”
Quero é lembrar de um filme que 10 anos atrás já havia tratado do tema, antes mesmo de Black Mirror, do filme O Irlandês e dos deepfakes hilários de Bruno Sartori fazendo Lula e Bozo de dupla sertaneja.
Em O Congresso Futurista (Prime), Robin Wright vive uma atriz em momento difícil: o filho exige um tratamento caro e ela não tem trabalho. Ela topa uma oferta irrecusável: uma empresa lhe oferece uma fortuna para escanear sua imagem e transformá-la em atriz virtual. Literalmente vende sua alma: nunca mais poderá representar - seu rosto não será mais seu, e sim da empresa. Wright aceita e 20 anos depois percebe as implicações desastrosas do contrato que aceitou.
O filme, meio live action meio anime, foi dirigido por Ari Folman (Valsa para Bashir) a partir de O Congresso Futurológico, livro de Stanislav Lem, autor polonês que já havia sido adaptado ao cinema por Andrei Tarkovski no clássico Solaris. No livro de Lem, o herói é um cientista lutando contra o totalitarismo soviético; no filme, é uma atriz em guerra contra o totalitarismo liberal. Não à toa Folman chama a indústria do entretenimento de “máquina de alienação”:
“Lem criou uma alegoria para falar sobre o comunismo, que era o que lhe interessava e, nesse sentido, fazia todo sentido criar aquele personagem para contestar a ditadura, mesmo que fosse do proletariado. Mas o Muro de Berlim caiu, o império soviético desmoronou e eu estaria fazendo um filme datado, se ficasse simplesmente repetindo aquela história. Minha dificuldade, ou meu desafio, foi buscar o equivalente contemporâneo. A indústria do showbiz controla corações e mentes. Fazendo do ditador o controlador desse universo, fazia todo sentido que meu protagonista fosse uma atriz. Estamos no limiar de uma escolha. Nossos líderes estão nos vendendo uma ideia fantasiosa de democracia que encobre um desejo totalitário. Nunca vi o mundo tão em perigo. Lem concordaria comigo. O comunismo pode ter sido derrotado, mas a ameaça a nossos direitos de indivíduos e ao sistema democrático nunca foi tão forte.”
Sorria, você morreu! Os filósofos Deivison Faustino e Walter Lippold tratam do marketing deepfake aproximando Walter Benjamin e Philip K. Dick.
Armênia em chamas.
Semana passada falei de Saia da Frente do Meu Sol, de Felipe Charbel. Agora trago outro excelente lançamento da Autêntica, Um Amor de Filha, de Hanaide Kalaigian. Também escrito na primeira pessoa, e usando muita pesquisa e memórias pessoais, o curto romance é ficção pura - um distanciamento que fornece à autora subsídios para construir com nervos uma história que pareceria banal, não fossem os desdobramentos peculiares.
A prosa muito fluida, com toques coloquiais bem equilibrados dentro de uma narração segura, é contada por Meliné, uma paulistana descendente de armênios, mulher de meia-idade que vive tranquila em uma casa confortável da Vila Madalena com a filha Aline até ter a vida sacudida por um furacão ao descobrir que o marido tem outra família e quer se separar.
Uma situação comum a muitas mulheres - a separação em uma idade difícil para quem teve uma tranquila vida de dona de casa e, acossada pelo machismo familiar, nunca cogitou a possibilidade de tocar a própria carreira - é conduzida por fúria e desnorteio que lembram Dias de Abandono, de Elena Ferrante.
O que torna o romance original, além da prosa envolvente e do mergulho na cultura armênia, é o contraste entre a juventude da filha Aline e as ideias engessadas da narradora, criada com muito ortodoxia dentro da comunidade. Seu castelo vai ruindo com estrondo: Meliné não entende como a filha tem vida independente e sexualidade libertária. Enquanto seu mundinho pega fogo, a narradora se abala ao tomar consciência do genocídio armênio vivido por seus antepassados na Turquia (razão de sua emigração ao Brasil) e tenta dar vazão ao lado artístico. Tarde demais?
O final é surpreendente.
Submarino zarpa hoje - em segurança.
Minha oficina de escrita começa nesta 5a feira, hoje, e ainda tem algumas vagas. Como o Titan, de triste memória, no meu Submarino também cabe pouca gente - mas é porque todo mundo senta na janelinha. É assim há 15 anos, desde que criei este curso, estruturado sobre as Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Italo Calvino. Nessas aulas foram escritas dezenas de livros - como o de Michi Provensi, Marinheira de Açude (Reformatório), que acaba de faturar o prêmio de melhor livro de contos de 2023 pela Academia Catarinense de Letras.
Todo encontro dou uma proposta de ficção breve, a ser trabalhada em casa, e assim todos têm tempo para ler e comentar os textos de todos, em aula. As cartas náuticas usam textos de autores contemporâneos, de Angélica Freitas a Vilma Arêas, passando por Marçal Aquino, Djaimilia Pereira de Almeida e José Falero. São 6 encontros, toda quinta, das 19h30 às 22h30, via Zoom, 599 janjas (bolsas de 50% pra professores e pesquisadores). Passagens no meu e-mail: ronaldobressane@gmail.com.
A Morel 8 chegou.
Olha que linda esta capa alternativa (são várias até a Morel final).
É a xamanesa Xênia França fotografada por Lorena Dini. Segue o editorial:
“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”, conta o ditado iorubá. Como uma cápsula de tempos, esta revista embaralha cronologias, já que o tempo humano nem sempre é o tempo do cosmo, o passado pode ser reinventado e as coisas podem ser reinauguradas a qualquer momento. Buscamos ideias para adiar o fim do mundo, diria Ailton Krenak. Suspender o tempo sequencial, da cronologia artificial, para que Exu, pássaro e pedra coexistam no presente – o tempo kairós, no grego antigo: a experiência do momento oportuno.
Para atrair esse tempo, convocamos Denilson Baniwa a uma conversa com o jaguar, ser que funda a mitologia brasileira de um jeito meio torto. No clássico do século 16, o europeu Hans Staden se assusta com a esperteza antropofágica dos tamoios e toma uma invertida felina. “Cunhambebe tinha à frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia uma perna, me ofereceu e perguntou se também queria. Respondi: ‘Um animal irracional não come o parceiro, um homem pode devorar outro homem?’ Mordeu-a então, e disse: ‘Jauára ichê. Sou um jaguar. Come. Está gostoso.’”
Krenak e Baniwa buscam o tempo de Cunhambebe, em que não se separa onça de humano, humano da terra, natureza de cultura. O tempo da beleza, como na ficção de Micheliny Verunschk e Yacunã Tuxá: “A onça era bonita. Uma beleza absoluta. E, como dizem ser os anjos, terrível, tremenda”
Neste terrível tempo dos homens, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 490, que não se resume ao bizarro marco temporal para a demarcação de terras indígenas: permite que povos isolados sejam contatados por missões cristãs e que hidrelétricas e rodovias atravessem suas terras sem consulta. Quem votou nisso tem uma ideia de futuro muito atrasada. Como os personagens de Joca Reiners Terron e Thany Sanches, serviçais do agro e do minotauro-dinheiro.
Ou como aquele biliardário pobre de espírito, na ficção de Ana Rüsche e Marília Marz. Ou o futuro tosco das charges de Paulo Ciência. Contudo, há futuros interessantes. Por exemplo, o Oráculo Quântico, inteligência artificial que se comunica com os mortos, “linha direta entre vivos e mensagens do além”, na ficção de Aline Valek escrita sobre as pinturas de Wagner Willian – aliás, imagens concebidas por IAs a partir dos prompts que o artista criou.
O tempo da viagem, tempo fora do tempo afim do kairós, está na aventura em quadrinhos de Gaía Passarelli e Tiago Lacerda, e também no lirismo gentil de Lucas Litrento e Francisco Mallmann. Toda utopia é possível se há beleza, sussurra a musa-música Xênia França no ensaio de Lorena Dini. Buscamos ideias para adiar o fim do mundo – que pode ser apreciado como arte, segundo Anselm Kiefer propõe, pelos olhos de J.R. Duran.
Por isso a Morel desta edição é nossa primeira band leader, imortal nos cliques de Bob Wolfenson. Brincando com uma jaguatirica, Rita Lee fundou sua utopia: “Um belo dia resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria fazer”. Fica a dica pra você transgredir a previsão do tempo e aquecer seu inverno.
Você pode pedir a sua direto no site da Ipsis.
Um abraço,
Ronaldo Bressane
Amei as perguntas e amei as respostas da entrevista com o Reiners Terron. A maciez de uma boa carne intelectual - sem amaciantes Maggi.