Olá,
vim te trazer a segunda Invenções de Morel, a newsletter da revista Morel, falando das novidades da edição 8, dicas de lançamentos de livros e – porque não sei ver defunto sem chorar… – aproveito pra meter o pitaco na recente polêmica envolvendo Itamar Vieira e Vini, os júniors mais terribles do Brasil.
1. O fotógrafo Rodrigo Petrella, que participou da Morel 6, abre no Museu Valencià de la Il·lustració i de la Modernitat a partir desta semana a sua nova exposição: O Mundo Indígena nos Tempos Pós-Amazônicos, uma mostra do registro em imagens das viagens ao Amazonas ao longo de 20 anos.
A exposição retrata a luta pela sobrevivência do mundo indígena pós-amazônico. Muitas das imagens desta exposição foram publicadas no ensaio “Pós-Amazônia”, capa da Morel 6, em que Petrella cria o conceito de pós-floresta para demonstrar como a paisagem do norte brasileiro já se encontra irremediavelmente transfigurada.
“Fala-se muito sobre o Arco do Desmatamento, área geográfica onde a fronteira agrícola avança em direção à floresta e também onde se encontram os maiores índices de desflorestamento da Amazônia. São 500 mil km2 de terras que vão do leste e do sul do Pará ao oeste, passando por Mato Grosso e Rondônia até o Acre. Já o Arco da Destruição abrangeria mais ou menos a mesma área, porém inclui o comprometimento da vida e cultura dos muitos povos indígenas”.
2. Uma das poetas mais criativas da cena atual, Bruna Beber lança seu sexto livro de poesia em 17 anos de atividade - que inclui muitas traduções de livros de poesia e prosa, além da escrita de ensaios como Stela do Patrocínio - Uma Encarnação Encarnada em Mim. O leitor da Morel 7 já conhece alguns dos poemas de Veludo Rouco (pense em um título sexy!).
Em versos cheios de ginga e humor, banhados na típica melancolia suburbana da Baixada Fluminense - tão perto e tão longe do mar -, Bruna recupera ambientes, situações e personagens de um tempo que "oficialmente não existe mais", porém permanece soando na memória do corpo, numa ponte inusitada entre Duque de Caxias e a Barra Funda paulistana. O retrato acima é de Renato Parada, outro que volta e meia dá as caras na Morel.
3. Outro colaborador de longa data de Morel, presente desde a primeira edição, Santiago Nazarian lança novo romance em agosto: Veado Assassino (que capa!). Em pré-venda, o livro é um virapágina lancinante (li as provas em duas horas). Um jovem incel de 16 anos acaba de matar o presidente da república (aquele mesmo) e conversa com um interlocutor desconhecido sobre sua vida de adolescente não-binário, sem perspectivas ou sonhos, alguma psicopatia e muita confusão. Um inquietante mergulho nesta geração que aprendeu a deslizar os dedos em uma tela antes de aprender a escrever o próprio nome, e que muitas vezes pratica a violência não como transgressão, mas como ato de afirmação de individualidade.
4. Esta newsletter é louca por tênis e ficou rouca de tanto gritar Bia Haddad em seu excelente jogo contra a insípida e robótica polaquinha Iga Swiateck. Como qualquer brasileiro na última semana, de repente lembrei que sou especialista em tênis e, depois de discutir com um carteiro, um feirante e um professor sobre Bia e o trio Nadal, Federer e Nole (e lamentar que o nacionalista sérvio antivax tenha virado o maior campeão do esporte), fui caçar uma entrevista da Bia. E que surpresa!, Bia também curte literatura, segundo contou ao Uol:
“Tento encontrar um tempo pra desligar a minha mente. Gosto de ler, de pintar, ir ao cinema ou, às vezes, a gente joga um tabuleiro que chama Sequence, por exemplo. Gosto de ler. Hoje, por exemplo, estou lendo um livro que chama O Amor dos Homens Avulsos, de um escritor brasileiro que já faleceu, Victor Heringer, então eu tento sempre desligar, mas fazer atividades que me conectam comigo ou que eu consiga passar um tempo refletindo e tendo esse espaço para lazer...”
O romance de Heringer será lançado em setembro nos EUA – e tem tudo para ganhar carreira internacional tão gloriosa quanto a que teve aqui. O romance entre dois garotos no subúrbio carioca, narrado no fio da navalha entre gentileza, humor e medo da violência, foi finalista do prêmio Oceanos em 2017. O blurb da edição em inglês foi escrito por ninguém menos que Zadie Smith:
“Quando você lê algo genuinamente novo, é difícil descrevê-lo – acaba recorrendo a comparações – e The Love of Singular Men é verdadeiramente um romance singular. É genial como Cortázar ou Nabokov, elíptico como Grace Paley, engraçado como Donald Barthelme. Ao terminar de ler, você deseja imediatamente conhecer o jovem que o escreveu, apertar vigorosamente sua mão e parabenizá-lo pelo início de uma carreira brilhante. Mas Victor Heringer se foi. Ele deixou para trás este belo livro.”
A raquete de Bia Haddad, que nos trouxe de novo Heringer, me fez lembrar outro escritor que se foi cedo demais, e que era louco por tênis: David Foster Wallace. O autor de Graça Infinita escreveu vários textos sobre tênis (e sobre pinguepongue), sendo o mais famoso “Federer e a experiência religiosa” (in Ficando Longe do Fato de Estar Meio Que Longe de Tudo), em que descreve uma partida entre o suíço e Nadal:
“A beleza não é o objetivo dos esportes de competição, mas o esporte de alto nível é um palco privilegiado para a expressão da beleza humana. É a mesma relação existente, em termos gerais, entre a coragem e a guerra. A beleza humana sobre a qual falamos aqui é um tipo particular de beleza: podemos chamá-la de beleza cinética. Sua força e seu apelo são universais. Não tem nada a ver com sexo ou com normas culturais. Parece ter a ver, isso sim, com a reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo.”
Além de me devolver o orgulho por torcer por um esportista brasileiro, Bia Haddad me devolveu, em sua entrevista cheia de energia, charme e inteligência, como seu jogo, o amor por Heringer e Foster Wallace, esses homens avulsos que escreviam frases surpreendentes como um drop-shot.
5. A Feira do Livro foi um sucesso. Iniciativa da revista Quatro Cinco Um, a mini Flip instalada na frente do Pacaembu entrou para o calendário de festas de São Paulo, além de movimentar o circuito literário brasileiro. Um dos assuntos que dominaram as rodinhas (você sabe que circuito literário adora fofoca) foi o triângulo da tristeza envolvendo Itamar Vieira Jr., Ligia Diniz e os tortoaraders – os cheerleaders incondicionais do maior best-seller da ficção literária brasileira desde Paulo Coelho. Creio que o episódio merece ser considerado pela estética da recepção, pois há um ângulo novo que pode trazer ressonâncias graves e perturbadoras.
Recapitulando. A edição de maio da Quatro Cinco Um trouxe na capa o autor, em longa entrevista a Adriana Ferreira Silva, com um ensaio fotográfico produzido especialmente por Uendel Galter na terra natal de Vieira Jr., no Recôncavo Baiano. Não me lembro de nenhum escritor brasileiro que recentemente tenha merecido tantas páginas em veículo de repercussão nacional.
À matéria jornalística, a revista agregou uma crítica de Lígia Diniz, professora de teoria literária na UFMG. A resenha de Salvar o Fogo, um texto rigoroso, elegante e focado nas obras de Vieira Jr., recebeu ataques de duas ordens. A primeira, dos tortoaraders, que localizaram as redes sociais da crítica e professora e dispararam sobre ela comentários chulos e rasteiros.
A segunda, do próprio autor, saiu em sua coluna na Folha de S.Paulo. Usando seu espaço no maior jornal do país, Vieira Jr. abordou os deploráveis ataques sofridos por Vini Jr. no campeonato espanhol – no último, milhares de torcedores do Atletico de Madrid gritaram ofensas racistas para Vini. O escritor enalteceu o espírito guerreiro do ponta-esquerda do Real Madrid e sua disposição para calar os críticos. Todavia, em uma virada cabotina, Vieira Jr. comparou as ofensas massivas recebidas pelo futebolista à crítica publicada na Quatro Cinco Um:
“O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo. Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação entre eles. Um livro conquistar um bom número de leitores —como ocorreu com Quarto de Despejo ou Torto Arado— ainda vai, mas dois já é demais. Eu não quero me manifestar todas as vezes que cospem na minha cara, mas Vini Jr. me lembrou que precisamos erguer nossa cabeça, pois tê-la curvada nunca nos ajudou em nada”.
“Quer debater uma possível incapacidade minha de reconhecer um projeto estético diferente dos modelos modernos? Topo! Quer me convencer de que indicar falhas de um romance está no mesmo espectro dos ataques contra Vini Jr.? Só posso lamentar a morte do debate público e da ficção”.
Em sua coluna n'O Globo, o escritor angolano José Eduardo Agualusa puxou as orelhas de Vieira Jr.:
"Atacar um crítico por fazer o seu trabalho prejudica-nos a todos, leitores e escritores, sobretudo numa época em que já temos tão poucas pessoas praticando, com profissionalismo, essa arte em decadência. O teu ataque torna-se mais difícil de aceitar a partir do momento em que recorres à autoridade da posição que ocupas hoje, enquanto um dos escritores de maior sucesso de toda a moderna literatura em língua portuguesa — um dos mais amados, vendidos, protegidos e premiados".
Curiosamente, Vieira Jr. não cancelou sua participação na Feira do Livro – cuja curadoria é do mesmo “editor branco” que teria chamado uma “crítica branca” para resenhar seu livro. A concorrida mesa, com a participação de Ana Maria Gonçalves, passou em brancas nuvens sobre o zunzum que zanzava pelo Pacaembu.
A descalibrada resposta do autor não foi a primeira. A crítica – negra – Fabiana Morais havia tuitado este comentário a respeito de Torto Arado:
“É um bom livro, mas: boa parte do entusiasmo vem do mercado editorial sublinhando obra que apazigua a má consciência branca (lembrando aqui Allan da Rosa/Baldwin). Excesso de didatismo incomoda. Às vezes parece aula pra pele clara entender”.
Conforme Morais conta em sua coluna no Intercept, recebeu um tuíte privado de Vieira Jr. sugerindo “que sou racista – afirma que eu preferiria que um homem branco estivesse no lugar de sucesso dele – por conta de um breve comentário que fiz, publicamente, sobre seu livro”.
Todo esse quiproquó me lembrou recente resenha do crítico Luís Maurício Azevedo, publicada na Folha Ilustrada, a respeito do romance Homens Pretos Não Choram, de Stefano Volp, em fevereiro de 2022. É verdade que a resenha – aliás escrita por um crítico negro – não economiza na acidez:
“O que chega até nós é uma soma de clichês, truísmos e cenas cujo valor se perde na adoção de uma voz autoral que se deseja poética, mas que se apresenta insegura, pueril e sem repertório”.
Em suas redes sociais, Volp contratacou, recebendo milhares de coraçõezinhos de seus leitores. Golpeado pelos volpetes, o crítico fechou suas redes sociais. A escritora Amara Moira, em artigo publicado no BuzzFeed, analisou a treta com um tom semelhante ao adotado por Agualusa em relação a Vieira Jr.:
“Eu preferiria receber uma crítica violenta como essa do Luiz Mauricio a muita louvação superficial que se fez sobre meus escritos. Pode ser que eu chore, desabe na hora de ler, mas se tem algo que eu aprecio são desafios, textos que me tirem da minha zona de conforto, que me façam ir além”.
Desde que algum anjo torto rabiscou a frase “No princípio criou Deus o céu e a terra” tem alguém atirando pedra no estilo alheio – que atire a primeira quem não tiver atirado ainda a sua. Novo aqui é este debate agregar as redes sociais à ágora literária. Antes havia uma notável distância entre um jovem escritor independente começando a publicar e o velho crítico acadêmico ranzinza usando seu espaço em um veículo lido por milhares de pessoas: uma discrepância desigual de potência entre os ocupantes do MMA literário, com muito menos peso ao escritor estreante.
A dinâmica algorítmica da redes sociais alterou a violência dos golpes de parte a parte. É como se numa plateia de MMA, a torcedora do escritor invadisse o octógono para meter a porrada no “rival”, o crítico. E a torcida, ao contrário da crítica, não sabe de nuances: é binária, ama ou odeia. Vimos o que aconteceu no octógono político brasileiro quando esse MMA foi ocupado pelas redes sociais. E não preciso lembrar do que acontece quando se cutuca o monstro com vara curta.
Falando sobre a crítica literária, em entrevista a Fred di Giacomo, no Uol, Vieira Jr. exaltou a literatura de Paulo Coelho:
"Se me perguntarem ‘Você quer escrever para a USP ou para encontrar leitores?’ Vou preferir encontrar leitores (...) A crítica brasileira está sempre em busca de Proust e à espera de Beckett. Quando descobrem que não há nem Proust nem Beckett, a coisa azeda".
E é aqui que a porca literária torce o rabo. Quando Lígia Diniz recebeu ataques dos tortoaraders, não faltou quem mencionasse negativamente a USP – embora a mineira Diniz não tenha nenhuma conexão com a universidade paulista. Acontece que a USP simboliza a academia brasileira, e sob tal camuflagem é que recebeu ataques de fascistas insuflados por Olavo de Carvalho, ideólogo do governo anterior. Queremos isso de novo?
A academia, como instituição que simboliza o grau mais elevado do saber e do conhecimento, também já cansou de ser atacada, e não só pelos cocôs dos pombos. Uma das revoluções culturais do século 20, o Maio de 68 francês começou como insatisfação dos alunos em relação ao sistema educacional, e até contou com acadêmicos entre os insurrectos, como o filósofo Michel Foucault. Assim como Junho de 2013, não deu bom: a reação foi uma guinada conservadora tanto da academia quanto da sociedade francesas.
Não espero que nenhum autor puxe saco da crítica, da imprensa, da academia – pelo contrário, o que mais prezo em um escritor é a independência. Porém, não me parece atitude inteligente lidar agressivamente com críticas e colocar a universidade no mesmo balaio onde olavistas a enfiavam.
Aliada ao chancelamento do marketing editorial, que adora o engajamento à base de polêmicas, e à ânsia do justiçamento das redes sociais, empoderadas por suspeitos algoritmos a serviço sabe-se do quê, a arrogante réplica do escritor à crítica, à academia e em última análise à USP lembra o comportamento que nos levou ao buraco em que cavamos no golpe de 16: uma atitude populista e anti-intelectualista. O caminho da barbárie. E o nome do monstro é conhecido - nem preciso citá-lo.
6. Junho de 2013 completou 10 anos e não poderia deixar de lembrar da crônica que escrevi, a quente, voltando a pé da avenida Paulista, no dia 14 de junho de 2013, fugindo das bombas de gás lacrimogêneo da Polícia Militar e tiros de borracha da Tropa de Choque. O texto – que nunca revisei – ganhou da História uma camada mais do que irônica, conforme você verá.
7. Falando em tortoaraders, outro autor frequente nas páginas da Morel lança novo romance em julho. Em Onde Pastam os Minotauros, Joca Reiners Terron coloca sua máquina imaginativa para funcionar em um thriller ambientado em um matadouro de gado que explora homens como animais e animais como vírus.
Sem abrir mão da denúncia social, mas também sem abraçar o panfletarismo, o autor matogrossense usa suas longas frases cheias de imagens para tratar do agro-ogro - o moedor de inteligência que infelizmente é um dos motores econômicos do país. O primeiro capítulo do romance pode ser lido na nova edição da Morel (acima, pintura de Thany Sanches que acompanha o texto).
8. Ah, sim! Acabamos de fechar a Morel 8, que vai trazer também ficção de Micheliny Verunschk, Aline Valek e Ana Rüsche, poemas de Lucas Litrento e Francisco Mallmann, ensaio-reportagem de J.R. Duran sobre Anselm Kiefer e uma HQ de Gaía Passarelli e Tiago Elcerdo. Tudo inédito. Y muchas mumunhas mais.
Gracias pela leitura,
Abraços
Ronaldo Bressane