Anthony Bourdain e o voo de Ícaro
Mais: o significado de ficar quieto no teatro, as memórias ziguezagueantes de Werner Herzog e outras dicas para sua fina educação
Caindo e voando
Todos esquecem que Ícaro também voou.
É assim quando o amor chega ao fim,
ou o casamento fracassa e as pessoas dizem
que sabiam que era um erro, que todos falaram
que nunca daria certo. Que ela era adulta o bastante
pra saber o que fazia. É que qualquer coisa que
vale a pena fazer vale a pena fazer mal.
Como estar ali perto daquele oceano de verão
do outro lado da ilha enquanto nela o amor sumia,
as estrelas queimando de um jeito tão bizarro
naquelas noites que qualquer um podia te dizer
que não durariam. Todas as manhãs ela dormia
na minha cama como uma oferenda, a gentileza nela
como antílopes na névoa da alvorada. Todas as tardes
eu a observava voltando através do campo quente
e pedregoso depois de nadar, a luz do mar atrás dela
e o céu gigante do outro lado. Eu a ouvia enquanto
a gente almoçava. Como podem dizer que o casamento falhou?
É como as pessoas que voltam da Provença (quando era Provença)
e dizem que era bonita, mas a comida era uma merda.
Eu acho que Ícaro não estava falhando ao cair,
estava só chegando ao fim da sua glória.
Em Roadrunner, doc de 2021 que agora estreou na Netflix, o diretor Morgan Neville mergulha na vida e na obra de Anthony Bourdain em um brilhante estudo de personagem - que também tem aqui e ali uns detalhes indigestos.
Bourdain redefiniu o que é ser um beatnik no século 21 e também elevou a coolness ao estado da arte. Autointitulado pirata das cozinhas, o chef charmosão tinha um jeito punk, mas tratava todo mundo com classe. Escrevia sobre o que vivia e preferiu viver dez anos a mil do que mil anos a dez. Sexy nas letras e nas telas, era porém adicto da monogamia, fiel como mau hálito, às esposas e aos amigos. Frequentava o jetset com a mesma nonchalance com que matava um porco no Congo ou comia o pulsante coração de uma cobra no Vietnã. Ex junkie de heroina e cocaína, tabagista inveterado, sua maior dependência química era a curiosidade - passava quase 300 dias do ano viajando atrás de cenários, comidas e personagens para seus programas de TV.
Acima de tudo um grande escritor, leitor de Hunter S. Thompson e Nick Tosches (procurem A Última Casa de Ópio, kids), embalou o gonzo journalism em um glamouroso programa de TV. Aliás talvez aqui resida sua grande novidade artística: levar a autoficção à virada etnográfica no registro audiovisual para milhões. Embora sua magra e triste figura mesmerize a tela o tempo todo, é seu insaciável interesse pelo Outro que predomina nos textos que escrevia para Parts Unknown - comprovando que a primeira pessoa só ganha relevo quando se ocupa com a segunda e a terceira, meu caro Montaigne. E, em outra contradição que o torna uma personagem única, talvez a quintessência do que chamamos “viver bem” - e viver bem é a melhor vingança, dizia o poeta George Herbert -, Bourdain era um sujeito apaixonado pela morte.
O mais inexplicável dos atos humanos ganhou uma densidade mais incognoscível com o suicídio de Bourdain. Se até mesmo aquele cara legal, amado por todo mundo, com a mais invejável das ocupações, cheio de amigos, pai de uma menina genial, namorado de uma mulher incrível, e ainda por cima rico e bonito, se mata, por que afinal eu deveria seguir vivendo nesse vale de lágrimas? A autoextinção tem esse condão de nos fazer repensar a precariedade da nossa existência. Por que continuar? E que tal não continuar?
Mais um drink e um rango perfeitos e vou ali esticar uma corda.
A questão se atualiza o tempo todo no doc de Neville, que já abre com o próprio Bourdain avisando: “Está é uma história que acaba mal”. Ao longo do filme vemos várias passagens em que o escritor-chef exibe humor negro fazendo piadinhas com a morte em um iate cinematográfico, mostrando-se absurdo se bronzeando numa piscina em um hotel do Oriente Médio enquanto do lado de fora bombas explodem, incentivando comportamentos de risco ao se atirar de penhascos - e há momentos em que a câmera flagra uma tristeza dilacerante.
“É que qualquer coisa que vale a pena fazer vale a pena fazer mal”, diz o poeta Jack Gilbert, na minha tradução do seu poema acima, citado no doc pelo irmão de Bourdain. Se viver bem é a melhor vingança, a melhor vingança para viver bem, confrontando a sociedade de consumo capitalista - como o programa Parts Unknown no fundo enaltece -, é ser o autor da própria morte, no auge, e em grande estilo, diria o punk Bourdain. Mas ele não disse: não deixou um bilhete de suicídio (fato raro para um escritor que se mata). O que ele sentiu nas horas finais permanecerá um mistério.
E nisso reside um dos defeitos do ótimo doc. Ao se recusar a entrevistar Asia Argento, última namorada do escritor-chef, e sutilmente sugerir que a descoberta de uma traição o teria levado ao desespero, o diretor Neville acaba manipulando nosso sentimento. O doc perde a chance de se adensar ao adentrar o território da mitologia, e foi uma escolha de Neville não prosseguir na senda aberta por Argento, quando edita uma visita do casal à Galeria dos Ofícios, em Florença, flagrando-os absorvidos na Medusa de Caravaggio (1597). Uma teoria hoje amplamente aceita sussurra que o retrato é na verdade um auto-retrato: Caravaggio teria coberto de serpentes sua própria face horrorizada ao espelho. O que agrega mais uma camada ao mito. A cena do doc é assombrosamente profética.
“Medusa é sempre descrita como uma mulher má, com essas cobras na cabeça. Mas poucos lembram que na verdade ela foi uma vítima de estupro”, diz Argento.
“Toda mulher poderosa e inconveniente é caricaturizada como uma Medusa”, concorda Bourdain.
“Sou a próxima”, brinca Argento.
De fato. Em seu necessário O Homem Não Existe (escrevi sobre o livro aqui), Lígia Gonçalves Diniz cita Charlotte Higgins em Mitos Gregos: Nas Tramas das Deusas (Zahar), e confirma a tese de Argento.
Ela narra o momento em que Perseu empunha a espada contra Medusa, que suplica: “Não foi culpa minha. Ela me odeia, mas não foi culpa minha.” A Górgona está se referindo a Atena, meia-irmã de Perseu, que fica atônito. Ela explica: “Posídon me estuprou no santuário de Atena. Ela disse que conspurquei seu templo.” Soa como uma leitura feminista forçada do velho mito? Fui procurar a versão de Ovídio: “Dizem que o rei dos mares a estuprara num templo/ de Minerva”, escreve o romano. “E que impune não fique/ transformou os cabelos da Górgona em hidras horrendas.”
Asia Argento e Anthony Bourdain, deuses contemporâneos, militaram contra um monstro real: o infernal Harvey Weinstein, que, conforme a própria Argento revelou espetacularmente em uma entrevista coletiva em Cannes, a teria estuprado. Se a Medusa é Argento, quem seria Bourdain, seu aliado no movimento Me Too? Caravaggio? Retomo o livro de Diniz:
O apagamento da violência sexual [dirigida à Medusa] não surpreende, assim como também soa previsível que, ao longo dos séculos, a imagem da Medusa tenha sido criada para evocar faltas morais. São interessantes a leitura e o desdobramento que se fazem dos dois mitos clássicos em que o espelho tem papel fundamental: com Narciso, aprendemos que homens não devem se deixar seduzir pela própria aparência (como, aliás, também já dizia Sócrates). Já com Medusa, aprendemos que as mulheres são culpadas pelas violações de que são vítimas, tornando-se monstros. E pior: o mesmo espelho que servia para mostrar a antiga beleza pode ser usado como uma arma para destruí-la.
Deuses contemporâneos que mantinham um relacionamento aberto, Asia e Anthony traíam-se mutuamente, segundo a atriz italiana contou em entrevistas. E de fato Bourdain esteve obcecado com o flerte de Argento com um jornalista mais jovem - antes de morrer, googlou-a 300 vezes, conforme revelou Charles Leerhsen em sua biografia não-autorizada. O olhar de Argento transformou o chef em pedra? A traição de Asia abriu uma ferida narcísica em Bourdain, levando-o a se imolar? Ou a tela da TV seria para Bourdain o espelho que Argento ajudou a rachar?
Jamais saberemos, e esta é mais uma contradição moderna: tudo está tão exposto que os mistérios fogem da luz. A face de Bourdain se obscurece quando ele ouve de Iggy Pop o que fez o roqueiro suicida prosseguir: “Ser amado - e saber apreciar o amor que as pessoas me dão”. O suicídio de Bourdain continuará como um enigma confidencial, a que só o escritor-chef terá acesso. Prefiro a analogia poética de Gilbert: Ícaro não estava falhando ao cair, estava só chegando ao fim da sua glória.
#pilhadeleiturasperdidas
“A memória é uma ilha de edição', reza o conhecido verso de Waly Salomão, e tal metáfora é perfeita para definir a autobiografia de Werner Herzog. Ziguezagueante, Cada Um Por Si e Deus Contra Todos (Todavia) tenta ser cronológica mas dá saltos no tempo unindo cenas separadas por 50 anos. Como em uma demonstração do conhecimento de quem sabe ordenhar vacas, inusitadamente importante para criar laços com o elenco de um filme. O cineasta flagra um momento da infância, quando aprende a apertar os úberes das mamíferas para não morrer de fome - e alguns parágrafos a seguir recorda o makin’ of de Além do Azul Selvagem, em Houston, com astronautas de verdade.
Como eu poderia convencer aquelas pessoas a atuarem num filme de ficção científica tão fantasioso? Eu lhes contei um pouco sobre minhas origens nas montanhas da Baviera enquanto observava os seus rostos. Um deles, o piloto Michael McCulley, tinha traços definidos e fortes, como conhecemos dos filmes de caubói. Eu disse que na verdade não era uma criatura da indústria cinematográfica, mas alguém que nos pós-guerra tinha aprendido a ordenhar vacas. Ainda hoje tenho um frio na espinha quando penso em como poderia ter posto tudo a perder com a minha fala, mas mesmo assim mencionei que, por causa do meu trabalho com atores e com rostos, muitas vezes era capaz de perceber nas pessoas coisas que elas guardam dentro de si. Por exemplo, que de um modo geral eu era capaz de reconhecer pessoas que sabiam ordenhar vacas. Virei-me para McCulley e disse: “Sim, estou convencido que sabe ordenhar vacas”. Ele gritou, bateu nas coxas, fez os movimentos de ordenha com os punhos. Sim, tendo crescido numa fazenda no Tennessee, McCulley havia aprendido a ordenhar. Não quero nem imaginar em que abismo de constrangimento eu teria me lançado caso estivesse errado. Mas o gelo tinha sido quebrado, e todos os astronautas participaram do meu filme.
Herzog tem um talento monstruoso para descrever cenas da natureza, fundamento de sua obra, tão cruel e enigmática quando o Deus a quem ele venera (e de quem às vezes suspeita). Surpreende sempre, ao apontar que sua infância paupérrima entre os arruinados edifícios de Munique do pós-guerra poderia ser muito mais divertida do que a de qualquer moleque burguês de condomínio (fiquei pensando nas crianças de Gaza e na infância de JG Ballard em um campo de concentração na China). E mesmo hoje aos 82 anos segue sem perder o dom de se maravilhar e de fazer perguntas. O que mais alguém pode querer de uma vida tão rica e imprevisível?
Uma história sobre aborto e fundamentalismo religioso
Nada melhor do que a ficção para denunciar a monstruosidade que é esta PL 1904 do criminoso deputado Sóstenes Cavalcante. É o único spoiler que posso dar do romance Catedral, da argentina Claudia Piñeiro (Primavera Editorial). Tomando como mote o maravilhoso conto “Catedral”, de Raymond Carver (pode ser lido em 68 Contos, trad. Rubens Figueiredo, Cia. das Letras), Piñeiro desvenda a história da adolescente Ana, cujo corpo foi encontrado esquartejado e carbonizado em um terreno baldio.
O mistério só será decifrado no final revoltante, depois de Piñeiro usar múltiplas vozes - das irmãs Lia e Carmen, do sobrinho Mateo, de seu pai Alfredo, da amiga Marcela, do cunhado Julián e do criminalista Elmer. Em sua polifonia, Piñeiro investiga com paciência, precisão e empatia tanto o amor dos familiares e amigos de Ana quanto o horror dos assassinos, justificado na covarde interpretação da religião.
Na epígrafe, Piñeiro dedica o livro aos que constroem sua própria catedral, sem deus. O que lembra um verso do poeta Mark Strand: Nuvens são catedrais sem crenças. Falta a fanáticos religiosos como Cavalcante a humildade de erguer seus rostos para o céu e se deixarem ver, com coração limpo, pela inocência das nuvens.
Fecha essa matraca!
De cara preciso dizer que minha experiência ao ver esta peça foi atrapalhada pelas gargalhadas insistentes de uma menina sentada ao meu lado. Verdadeiro saco de pipoca ambulante, a menina precisava rir a qualquer gesto, palavra ou passo de dança de cada um dos fabulosos atores de Aqui Elevado a Um Trilhão, para deixar bem claro que estava entendendo tudinho. Gente, teatro não é stand-up, você não tem que ser a claque do Seinfeld. Respeitável público, se dê ao respeito e se coloque no devido lugar – não é porque inventaram teatro interativo que você se obriga a dar o ar da graça a todo instante. Eu quero ouvir o texto, cazzo!
Em entrevista à TV Brasil, a grande Denise Fraga diz que “a gente vive a ditadura da comédia. A pessoa quer gastar o seu rico dinheirinho rindo muito numa comédia e muitas vezes ri sem vontade de rir. Esquece que pode se divertir muito mais vendo um drama”. Não que a peça de Elisa Ohtake não tenha lá seus lances cômicos - mas não é humor de picadeiro: é um humor trágico. Sob uma trilha de música eletrônica ou hard rock (tem até CAN e um solo do Lúcio Maia), doze personagens sem nome ocupam o palco falando do que fariam se não tivessem de estar ali. Citam visitas a lugares distantes, maravilhas do planeta que, somos lembrados a todo tempo, serão obliteradas pela catástrofe ambiental que se avizinha.
O lixo que vai se acumulando no palco é o vestígio da civilização a comer a Terra por dentro como um câncer mutante. A menina gargalhava – talvez de nervoso? De medo? O riso também é uma reação compreensível ao horror do apocalipse –, e eu só me entristecia a presenciar os discursos de cada personagem, pois se aparentam aos loucos de rua, aos cracudos, aos habitantes das calçadas morrendo de vontade de nos contar seu testemunho da catástrofe mas sem lograr se realizar numa linguagem que não se fragmente em repetições nonsense (lembrei das vozes zumbis de Beckett e do conto "Um lapso de razão", de André Sant'Anna).
O gestual espasmódico e inusitado dos atores, em coreografia errática que contrasta com a fala tentando fazer sentido, tudo dito em gritos ou silêncios imprevistos, aproxima o teatro da pura performance. Destaque para a interpretação de Georgette Fadel, uma das presenças mais magnéticas do nosso teatro. Estamos onde não estamos, e um dos objetivos da peça, em muitos momentos metalinguística, é lembrar que teatro é produção de presença, e produção de presença é tudo o que o capitalismo quer roubar, assaltando nossa atenção e nos distraindo do que é relevante aqui e agora. Fica até 14 de julho no Sesc 24 de Maio, do lado do Municipal. Vai ver!
E por falar em teatro e em André...
O escritor mineiro/fluminense está relançando Amor, junto com um show muito louco experimental transgressor de vanguarda do Sons & Furyas, baseado no livro. Vi esse espetáculo uns 10 anos atrás e não consegui parar de rir (desculpe, menina do texto acima), mas lembro que também chorei com uma linda interpretação de “O divã”, gema pop em que Roberto Carlos conta para o analista como foi perder a perna em um acidente aos oito anos, trauma que ele até hoje não consegue enfrentar – nunca cantou essa música ao vivo.
Pra quem não conhece, Amor, obra-prima do conto brasileiro do começo dos anos 2000, é a antologia que tem belezinhas da ficção breve na seção “Jam session”, a imaginar mitos da música em situações específicas. “Bitches brew” é o encontro entre Miles Davis e Duke Ellington no além. “Nothing is real” flagra os Beatles emaconhados prestes a se reunir com a rainha da Inglaterra. “Você já experimentou?” narra os últimos momentos de Jimi Hendrix. “Simpatia pelo demônio” mostra como uma briga entre Mick Jagger e Keith Richards trouxe um novo pimpolho para o primeiro. E “Bird e algo” devassa a situação angustiante de Charlie Parker, epítome do artista que nunca se contenta com a própria genialidade – até que tropeça em algo. Como, lá em cima, tropicou o Bourdain.
O show vai ser dia 21 de junho no Picles, atual pico descolê do ex-bairro de Pinheiros, aquele em que antigamente tinha umas casinhas e uns artistas, professores e estudantes, e onde hoje só vivem hipsters farialimers sem charme.
Enquanto fechamos a Morel 12, que tal você dar uma espiada na Morel 11?
Gracias pela leitura,
abraços,
Ronaldo Bressane
Que texto esse! Caracaa
Estou assistindo o documentário essa semana (como se fosse uma série ou uma boa refeição), com calma, e tenho pensando muito sobre o Bordain.
Lembrava de um relato de quando ele veio no Brasil e não havia uma impressão lisonjeira.