Crônica em situação de rua
Uma infeliz coluna de Antonio Prata e a melancolia das estantes nuas. Mais: 5 dicas pra preencher prateleiras com livros de culturas distantes
Que situação!
Uma amiga fofoqueira deu a letra: em seu Instagram, Eduardo Suplicy corrige Antonio Prata pela crônica de 5 de maio, em que critica a expressão "pessoa em situação de rua" - para o escritor, "uma aberração do politicamente correto" (Pratinha prefere "mendigo"). Aí você vai ler a coluna do amigo e se entristece ao ver que ele envelheceu, e pior, se tornou um conservador; porém, no decorrer da coluna, percebe que o argumento do texto no fundo é progressista - só que, por ter sido mal redigido, parece querer dizer justamente o contrário. Aí você vai ler os comentários à carta do Suplicy e vê seguidores de tochas na mão, já chamando Pratinha de fascista. Urge a todos interpretação de texto. Todos estão surdos, meu caro Roberto Carlos.
O argumento de Prata é que a expressão "pessoa em situação de rua" enverniza o termo "miserável", "mendigo" etc - o que até é um argumento justificável, no sentido de que a linguagem pode mascarar o real problema. Porém o cronista está careca de saber que críticas ao "politicamente correto" são coisas de reacionário e caem naquela categoria pseudolibertária “poxa, cadê o humor, não se pode falar mais nada” etc.
No mesmo texto, o que me parece muito mais grave, Prata aplica o termo "viciado" para designar pessoas vulneráveis dependentes de substâncias químicas, o que é moralista - e há uns 30 anos não se usa, entre gente informada. Este retrato de uma pessoa em situação de rua é altamente caricatural e estigmatizante, e comprova que Prata - morte horrível para todo cronista que se preze - parou de perambular pela rua:
(…) o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack (…)
Ou seja, por efeito do registro irascível da escrita e da evidente demonstração de insensibilidade observadora e ausência de letramento social - o que é injustificável no espaço privilegiado que ocupa, tanto na Folha de S.Paulo quanto no bairro em que vive, Higienópolis, sem falar em sua formação em ciências sociais -, o cronista meio intelectual meio de esquerda acabou ficando meio Ratinho meio Alborghetti ao abordar atabalhoadamente um tema importante e louvável: como o uso de determinadas palavras pode ocultar as causas justas.
Só que o tom do texto - e estética é ética, meu amigo - dá a entender que Prata está mais inconformado com o uso da expressão "pessoa em situação de rua" do que com o fato de existirem pessoas em situação de rua. Por outro lado, os seguidores de Suplicy - e vários são meus amigos - claramente não leram o texto de Prata e estão mais ocupados em lançar o cronista na fogueira. Enquanto isso, há cada vez mais pessoas em situação de rua perambulando por São Paulo… daria pra lotar um Morumbis.
Conversando com amigos do movimento social, soube que o termo "situação de rua" é o preferido porque muita gente "está" em uma situação precariamente dormindo na calçada, mas não "é" morador de rua, não quer continuar lá: estar morador de rua não configura uma identidade. Chamar essas pessoas de mendigos é ainda mais tosco, posto que muitas trabalham e detestam pedir esmolas. Um escritor do nível do Prata deve estar atento a essas nuances da linguagem.
O termo "sem teto" é até mais preciso, uma vez que também incorpora pessoas que não são proprietárias de imóveis: a imensa maioria da classe baixa e boa parte da classe média - tal como este substacker que vos digita. Sim, consciência de classe me interessa: me sinto muito mais próximo de amigos em situação de rua do que de amigos moradores do bairro higiênico.
Pessoas em situações de rua, como vimos na pandemia, também são pessoas que perderam suas rendas e seus empregos, não têm redes de apoio nem fundos de reserva, não conseguiram mais pagar seus aluguéis e foram parar no relento. Por morar no centro de SP naquela época, conheci muitas dessas pessoas. São o porteiro do teu prédio, o garçom que te serve, a cozinheira que faz tua comida, o frentista que enche o tanque do teu carro, o catador que pega tuas embalagens recicláveis, o enfermeiro que te atende no postinho, o traficante que passa maconha e pó pro teu filho.
O mais lamentável nesse episódio Suplicy Vs. Prata é que, na coluna, percebe-se que o alvo real é a higienista e estúpida prefeitura de SP, que pretende transformar a calçada sob o Minhocão, lar de muitas pessoas, em vagas para automóveis. Prata está incomodado com o fato de que o uso de supostos eufemismos como "situação de rua" silencia o fato de que há cada vez mais miseráveis pela cidade - no entanto há bons burgueses que não querem saber disso e são hipócritas por usarem "termos politicamente corretos".
Só que quase ninguém vai chegar a esta fase do texto: quase ninguém tem paciência pra ler mais que 140 caracteres, como se nota pelos comentários ao post do Suplicy - e pelo tom odioso do texto de Prata na direção do politicamente correto, mais parece que estamos lendo uma coluna tenebrosa do suposto filósofo Pondé. É por isso que o desditoso episódio ilumina tanto a impaciência e o imediatismo dos leitores ávidos por cancelar o cronista mais lido do país… quanto a agressividade e a arrogância do cronista.
Se Prata está na verdade inconformado com a miséria que grita na cidade mais rica do Brasil - com o apagão de inteligência urbanística dos governos municipal e estadual e com a hipocrisia dos higienopolitenses supostamente progressistas que adotaram a expressão "pessoas em situação de rua" mas detestam vê-las ao passarem dirigindo seu carro blindado a caminho de casa, a alguns quarteirões acima do Minhocão onde reside a ralé -, por que não escreve sobre isso, em vez de focar um termo corrente na língua?
Se a ânsia de cancelamento também oculta (e revela) ressentimentos de classe e um envergonhado desejo de silenciamento do Outro, a denúncia da hipocrisia também pode ser hipócrita - como cansamos de ver nos discursos e práticas de caçadores de corruptos e jornalistas de moral ilibada. Em tempo: o post de Suplicy se limita a corrigir Prata, não o critica ad hominem como os comentários dos seus seguidores. E seguirei lendo as crônicas do amigo, que comigo ainda tem créditos. Mas: se liga, pô.
Enquanto estamos tendo essa conversa fiada, o número de pessoas vivendo em situação de rua em todo o Brasil aumentou 25% em 2024, passando de mais de 261 mil em dezembro de 2023 para 328 mil pessoas, aponta o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Meditação sobre as estantes vazias
Vendo-as assim ocas, não contenho a vontade de clicá-las, todas nuas, como se recém vindas ao mundo, frescas e abertas a maravilhamentos, como se já não tivessem sido desconcertadas por guerras, acidentes, mortes. De longe tão instagramáveis, alvas, lisas, sedosas, crocantes, cremosas, seus nichos quadradinhos 35x35cm têm algo de Lego, de legal, de legítimo. Só quem chega de perto nota: estão feridas, machucadas, têm cicatrizes, arranhões, vergões, beliscões, riscos, mordeduras, lascas, cortes, mutilações, furos, chupões, mijadas, fungadas.
Algumas me acompanham há quase vinte anos. Suas finas pranchas de MDF testemunharam casamentos, divórcios, leilões, funerais. Algumas já estiveram em situação de rua, ou melhor, em situação de depósito de móveis, passando meses trancadas em boxes até que eu encontrasse um novo lugar pra alugar. Sinto-me solidário a elas, leal como mau hálito: com algumas fiquei até a sua morte, sua dissolução em pó de mofo, em rango de caruncho, posto que fidelidade a mãe de livro é pau que cupim não rói.
Vazias assim são todas noivas, um porvir invencível à frente, livros por colorir e livros por destruir - quantos não as abandonaram para pagar dívidas e para fazer novas, para comprar outros livros, e para que comprar tantos livros, por que não trocá-los por um kindle, como fez um amigo, ou transformá-las em um sebo, como fez outro? Pra que guardar tanto livro, levá-los de um lado pra outro esses livros andarilhos, ciganos, circenses, condenados a um eterno manquitolar sobre a Terra, feito judeus errantes?
Mas você leu todos esses livros?, me pergunta sempre quem vê as estantes cheias. Todo dono de estante já vivenciou essa perplexidade. Óbvio que não. Li dez ou vinte vezes mais que isso, mas nem todos os livros que li eu tenho, nem todos que tenho eu li. Todo dono de estante sabe que tantos nomes impressos nas lombadas são os únicos companheiros de viagem deste Sexta-Feira cuspido pelo oceano da literatura. Donos de estantes somos, como definiu Ana Martins Marques, aqueles para quem o desejo não é prenúncio mas já a aventura: colecionamos bilhetes para as próximas viagens, viagens que talvez nunca faremos, mas nunca é uma palavra que uma estante nunca diz.
Festival Poesia no Centro
Por falar em Ana Martins Marques, dia 17 às 19h ela conversa com Fabrício Corsaletti mediados por Fernando Luna na Megafauna da Praça Roosevelt. Mas esta é só uma entre inúmeras leituras com dezenas de poetas de todo o país neste festival sem paralelo, refletindo o grande momento da arte lírica de 2025. Busque conhecimento no Insta da livraria Megafauna.
Inteligência Acidental
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#pilhadeleiturasperdidas
5
Frio cortante
É um livro pra ler debaixo do edredom, com o aquecedor no talo e um chá na mesinha ao lado - mesmo que você esteja numa praia escaldante. É brutal o poder desta sul-coreana em causar frio, tristeza, solidão e desespero. Na tradução de Natália Okabayashi, o enredo do romance Sem Despedidas, da nobelizada Han Kang (Todavia) é delicado e lacerante como um cristal de neve. Uma escritora atende ao chamado da amiga cineasta e marceneira, que cortou gravemente a mão em um acidente e precisa que alguém cuide de seus pássaros engaiolados em sua casa, na ilha de Jeju, em pleno inverno. O livro todo não para de cair neve e de ventar forte, e durante a fantasmagórica viagem da narradora - nunca sabemos se é real ou se é sonho - , mergulhamos também em um espantoso passado de massacres: nesta mesma ilha, milhares de pessoas foram atiradas ao mar ou enterradas em cavernas, décadas atrás. A estúpida Guerra Fria que criou ditaduras na América Latina também estraçalhou famílias do outro lado do mundo, mas no caso coreano dividiu ao meio um país já bastante brutalizado pelos vizinhos Japão e China. Mesmo com o pano de fundo político, o que fascina nesta narrativa é a persistência estoica com que a narradora, sem jamais descansar ou mesmo se alimentar, segue seu caminho até a escuridão mais profunda e gelada.
4
Frio acolhedor
Mas em um país ainda mais frio, a Islândia, acontece uma história paradoxalmente tão aconchegante quanto um sofá frente a uma lareira acesa. Neste clássico afinal vertido ao português por Francesca Cricelli e Luciano Dutra, outro vencedor do Nobel, Halldór Laxness (autor do épico Gente Independente), acompanha a formação de um jovem dividido entre as tradições nórdicas, lapidadas pelos rigores de uma geografia hostil e isolada e costumes místicos, e o fascínio pela modernidade, representada pelo encontro com um cantor lírico de fama internacional. Em Os Peixes Também Sabem Cantar (Zain), com humor e sabedoria - aquele tipo de autor com quem a gente tomaria uma cerveja -, Laxness vai conduzindo a jornada de Álfgrímur em sua busca por identidade pelas ruas de Reykjavík.
3
Calor místico
Viúva do escritor e cineasta francês Jean-Claude Carrière, a escritora iraniana Nahal Tajadod encarna o andarilho Shams de Tabriz durante seu encontro com o poeta e filósofo sufista Rumi na Turquia do século 13. Misturando fatos históricos a descrições do êxtase amoroso, a narrativa busca flagrar um dos encontros mais profícuos da literatura de todos os tempos. Depois dos três anos que conviveram, o persa Rumi passou décadas escrevendo a mais sólida obra lírica do mundo islâmico - que, curiosamente, há 10 anos se tornou um dos livros mais publicados no planeta: sua mistura de sagrado e profano mantém-se magnética, 800 anos depois. O dervixe rodopiante já era um filósofo reconhecido quando teve sua vida estremecida ao conhecer o inflamável andarilho, cujo nome quer dizer pássaro - porém, durante a leitura de O Faminto, nunca sabemos quem é o mestre e quem é o aprendiz (tradução de Régis Mikail, editora Ercolano, linda edição com ilustrações de Ali Boozari)
2
Vida invisível
Dedicada ao mundo árabe, a Tabla traz mais um livro perturbador, em tradução de Felipe Benjamin Francisco. Em um apartamento sombrio de Argel, um homem sem nome e de passado conturbado vive isolado, cuidando de um idoso com demência. Quando o idoso morre e o cuidador some estranhamente, um detetive investiga o caso. Na primeira parte, conhecemos o Sr. Ninguém, um dostoievskiano homem do subsolo que odeia tudo e todos, com inteligência mordaz e violenta consciência de sua vida invisível. Na segunda parte, o livro se converte em romance criminal, em que o detetive Rafiq Nassiri investiga O Desaparecimento do Sr. Ninguém. Com achados como “O intelectual não passa de uma galinha depenada nadando no próprio caldo”, o autor argelino Ahmed Taibaoui tece uma teia sutil, moldada em humor e amor aos paradoxos, transformando um thriller de mistério em um ensaio sobre a descoberta da própria identidade em um mundo que não presta suficiente atenção a seres muito especiais.
1
Quem acerta o alvo perde o resto
O título desta seleta de poemas remete ao antigo blog do escritor gaúcho em uma imagem de rara precisão: quem mastigará um sanduba feito de coisas pontiagudas que servem para acoplar iscas pra peixe? São assim os poemas de Scott: perfurantes, sedutores e doloridos, ainda que saborosos.
nove ratos dilaceram um pardal
sento no banco mais próximo
ao lado de um homem
que olha fixo para o céu
peço licença
ele pergunta que horas são
digo-lhe que é meio-dia
e volto a reparar nos ratos
um deles está cercado pelos demais -
pergunto para o homem
se a claridade excessiva não lhe fará mal
ele responde que escuta meu reparo
o melhor modo de estudar a noite
O volume compreende 25 anos em oito livros de poesia - dos mais herméticos aos mais narrativos. Há uma proliferação de textos opacos e obscuros, cujas alegorias recusam decifração de sentidos. Não é poesia de fácil adivinhação. Melhor ficar com o imprevisto de imagens como “o giltter desagradável do outono”, “a claraboia mija seu galho ardósia”, “a lembrança sangra um sumário de lambaris agitados”, “tudo que a luz da manhã destrói”, “toda morte é ventre”, “entre o ácido do fogo e a língua do tamanduá”, “o tempo degola os mágicos”.
Nenhum poema tem título, embora o livro tenha quatro partes, então pode-se lê-lo em qualquer ordem, ou mesmo na ordem direta, e se deixar surpreender pelo embate entre a delicadeza e a brutalidade se acotovelando em versos livres sem busca aparente por ritmos. Se personagens, lugares, cenas e diálogos denunciam o apego do autor de Voláteis pelo drama, a precariedade das situações torna o percurso livre para associações estranhas, sugerindo uma filiação ao surrealismo, algo inusitado para um autor reconhecido pelo realismo político de romances como Habitante Irreal. Também não é poesia que se agarra a epígrafes e referências, e os raros poemas estruturados em figuras da cultura mais espantam do que explicam:
ontem, tentei assistir à entrevista que Clarice Lispector
deu ao programa Panorama na TV Cultura
em mil novecentos e setenta e sete
(não consigo passar dos seis minutos e onze segundos)
não sei explicar a tontura que sinto
desde o ano passado, tenho tido dificuldade
de assistir aos videoclipes dos grupos e bandas
que fizeram a história do rap acontecer -
esses lugares são montanhas muito altas
(e não é a visão do alto que me impede)
Clarice demora a me dizer: suba; Chuck D, ao contrário
sempre me estendeu a sua mão
(devo estar ficando velho para acompanhar Chuck D) -
é engraçado que eu seja escritor (Chuck D não sabe)
essa vontade de montanhas
como ouso?
estes sonhos onde a pressão atmosférica é menor
Porém, ao contrário do que sugere o poema, mesmo que o hip hop social aparente ser a batida do autor de livros politizados como Marrom e Amarelo, sua poesia se aproxima dos rarefeitos mistérios lispectorianos. Nota-se um Scott livre de objetividades, mesclando os sustos de suas paisagens íntimas, perfuradas por minuciosa monstruosidade, a sobrevoos que descrevem uma geografia pessoal - Porto Alegre, Rio de Janeiro, Garopaba, São Paulo.
“Quem acerta o alvo perde o resto”: neste verso, que se repete em um poema, talvez resida uma chave ao entendimento de tal errância. Não é poesia que convoca interpretações diretas e retas: prefere o sinuoso e o torto. O amigo Scott autografa esta beleza neste sábado 18 de maio na Ria Livraria, rua Marinho Falcão 58, Sumarezinho, SP, do lado do metrô Vila Madalena.
Links
Festival Poesia no Centro na Livraria Megafauna
Uma crônica de quando eu achava que ia parar no 25o endereço
A malfadada coluna do Antonio Prata
A carta aberta do Eduardo Suplicy
A Hora dos Acordados, HQ de Leandro Assis
Substack da vez: o Jogo da Velha de Noemi Jaffe
Gracias pela leitura,
abraços
Ronaldo Bressane
Como sempre, uma delícia de ler!
Uma crítica amorosa. Tomara que chegue ao Antonio Prata.