“Lar? Amigos? Os conceitos de base doméstica e de amizade tinham de ser redefinidos nessa civilização neuromóvel que estávamos criando. Como partículas em movimento, sempre em órbita, não podíamos criar raízes como os nossos progenitores. Tive quatorze endereços em cinco anos. E eu não era o único nesse novo estado de mobilidade (...) Certa noite, depois de esquiar por oito horas, deitei em frente à lareira do meu chalé e elaborei o conceito de Quociente Evolucionário: o número de endereços de correspondência dividido pela idade cronológica. Eu somava cinquenta e três endereços nos meus 50 anos de vida: 1,06. QE de um americano médio: 10 casas/40 anos = 0,25. QE da minha tia Mae: 1 casa/80 anos = 0,01.
Essa escala não considerava mudanças cerebrais: as trezentas sessões de Morning Glory, trezentos reimprintigs, trezentas mudanças de realidade. Entretanto, indicava que eu havia rompido para além da força gravitacional do passado e entrado num estilo de vida relativístico pós-terrestre, anos-luz do padrão normal de vida humana: amigos que trabalham juntos, frequentam os mesmos clubes, veem-se regularmente nas noites de quarta e tardes de domingo. Eu havia me tornado um viajante do tempo-espaço, em casa e em lugar nenhum, em casa e em todos os lugares.”
Esta semana inaugurei o décimo-quarto CEP da minha vida adulta, o 25º no total (meu QE está em 0,47). Nos últimos 30 anos, fiquei no máximo 5 anos em cada CEP. Entre esses 14 lugares, houve outros CEPs mais curtos, lugares de passagem, que duraram até uns 6 meses. Me mudei por motivos variados – os quais não vêm ao caso. O que me parece interessante é o conceito de estabilidade-na-instabilidade.
Desde cedo convivo com o barulho das fitas adesivas sendo rasgadas e coladas em caixas de papelão, com a visão do desaparecimento e do reaparecimento das minhas coisas para dentro e para fora das caixas, com o caminhão-baú parando em frente à velha e à nova casas, com o sumiço e o nascimento de vizinhos. Depois que você passa por muitas mudanças, a ideia de que o próximo CEP não será o último se cristaliza.
Tal como os gatos domésticos, que detestam sair de casa, muita gente se horroriza com mudanças. Nenhum problema com isso: em uma semana, minha expertise com ch-ch-ch-changes evaporaram 77 caixas com livros, roupas, trecos e cacarecos. Fazer mudança é uma chance de exercer a mariekondização. Sempre me livro de livros, roupas, badulaques que vão ser doados (ou vendidos pra pagar dívidas). Desta vez, minha fúria de desapego se dirigiu a DVDs e a fitas cassetes – 10 anos atrás, já tinha me libertado do fardo dos CDs. A sensação de me livrar das coisas que pesam é quase tão boa quando a que tive ao adquiri-las – talvez melhor.
Mas este nomadismo urbano nem sempre tem essa faceta evoluída espiritualmente.
Aliás, o termo “evolução” que Timothy Leary aplica ao QE lá no começo deste texto deve ser visto com lupa. Leary, carismático homem branco de inteligência muito acima da média, egresso da elite econômica estadunidense, sempre esteve conectado com as elites, sejam financeiras, sejam intelectuais. Seu nomadismo foi voluntário, produto de uma visão de mundo libertária, mas também narcísica e neocolonialista, e com uma sorte fora do comum. E infelizmente, o conceito de cidadão global, proposto de modo visionário e otimista com o QE de Leary, foi corrompido pelo capitalismo no atual termo “nomadismo digital”.
Reportagem da 1843, revista cultural da The Economist, bíblia neoliberal, observa como o nomadismo digital é a paráfrase pós-capitalista do mundo comunal proposto por hippies libertários como Leary:
Roam (...) uma empresa que se descreve como uma ‘comunidade de convivência e trabalho conjunto’. (…) projetada para pessoas que podem trabalhar em qualquer lugar e desejam viver em todos os lugares. Em Londres, os membros pagam 850 dólares por semana e podem se mudar com 7 dias de antecedência. Podem alternar entre as propriedades com facilidade, encontrando em cada uma delas uma comunidade de colegas viajantes. Essas pessoas não são fugitivas da sociedade convencional, mas estão imersas nela, até mesmo a representam. São os pioneiros da globalização e os beneficiários do trabalho flexível. Para eles, o lar não é um castelo ou um ajuntamento de quartos, mas um estado de espírito.
Gosto da expressão “o lar é um estado de espírito”. Muito descolada, assim como Leary dizendo “se sentir em casa em todos os lugares”. Lembrei da vez em que o Ronaldo Nazário foi visto chegando sem malas a alguma capital global, não lembro qual, e, perguntado sobre sua falta de bagagem, respondeu, com a frieza com que fuzilava zagueiros e goleiros: “Vou comprar tudo o que eu preciso aqui”. É assim que fazem os megarricos, meu caro nõmade.
Corte brusco para o novo capítulo da eterna guerra entre israelenses e árabes. Noves fora os motivos, que não vêm ao caso aqui, existe um nó essencial: a terra. Ambos os lados estão convencidos de que aquela terra seca e horrível lhes pertence. Aplicando a frieza de raciocínio do Fenômeno, porém, é forçoso observar que só um dos lados tem o poder de confinar o outro lado a um espaço muito menor. Só os habitantes de um lado consegue viajar para qualquer lugar do mundo. Só tais residentes conseguem, inclusive, festejar uma coisa chamada Universo Paralello, onde são consumidas recreativamente aquelas substâncias lisérgicas afins à revolução psicodélica proposta por Leary. Uma festa em que se dança a utopia, conforme se lê em seu site:
Meio ao turbilhão destes tempos modernos abre-se uma janela, uma oportunidade de vivermos algo singular, radicalmente diferente da teia de conexões, compromissos, a roda viva, o matrix civilizatório das regras estabelecidas a que somos submetidos, nas rotinas de nossas vidas. Este espaço é criado para permitir o florescimento de um grande organismo coletivo que, durante oito dias, irá irradiar para todo o planeta a energia da liberdade, do deleite, do encontro, da celebração. E nestes oito dias de celebração, sejamos todos cúmplices... na construção de uma atmosfera de liberdade e tolerância. De criatividade e ousadia e de um profundo respeito pela natureza a utopia a chave o segredo. A verdadeira porta de entrada para um autêntico universo paralelo.
A imagem de guerrilheiros de paragliders sentando o dedo em metralhadoras pra cima de ravers alucinados de LSD e MDMA no meio do deserto, a vinte quilômetros do território onde dois milhões de pessoas se espremem sem água, luz, internet, comida e passaportes, é distópica demais para ter sido concebida por um cineasta ou escritor. De novo a realidade driblou a ficção e entregou um Onze de Setembro.
É sobre isso, camaradas da civilização neuromóvel. Utopia significa não-lugar. Assim como psytrance é uma perversão chulé da melhor música eletrônica, o Universo Paralello é uma perversão capitalista do conceito anarquista utópico de Zona Autônoma Temporária. O mesmo conceito pervertido no atual Burning Man. Para usar a terminologia bíblica palestina: brincar de Éden do lado do inferno deu ruim.
Daqui do meu novo posto de observação do mundo – sabe-se lá até quando vou me segurar neste CEP – , usando a objetividade do Fenômeno, sugiro as palavras precisas: é impossível existir um “não-lugar” se você está cercado de distopias. E não existem nômades digitais; existem pobres plus metidos a ricos que torram todo o carbono do mundo em viagens transatlânticas até a startup bilionária da vez chutar suas bundas. Não existe nomadismo urbano – existem pessoas empurradas de um lugar pro outro porque nunca conseguiram acumular dinheiro para garantir pleno direito ao próprio espaço. E não, dona Marie Kondo, não existe charme em afirmar que se pode “viver com menos” quando a maioria vive sem o mínimo.
#pilhadeleiturasperdidas
O trecho que abre esta newsletter foi tirado de Flashbacks – Surfando no Caos, autobiografia de Timothy Leary publicada pela extinta editora Beca com tradução de Hélio Melo, edição de 1999. Hey, editoras, está na hora de reeditar uma das biografias mais ricas, divertidas e impressionantes do século 20.
Oráculo da Noite
Já que falamos de Timothy Leary, fiquem com o comecinho da minha entrevista com Sidarta Ribeiro na nova Morel. O neurobiólogo atualiza a revolução psicodélica do psicólogo estadunidense com um termo essencial: a partilha. (Retrato do Leo Aversa.)
Queria saber se O Oráculo da Noite continua te fazendo sonhar, se realizou sonhos que você nem sabia que tinha, se inspirou outros sonhos... Estou com 52 agora, esse livro saiu em 2019 e marca o fim do primeiro tempo da minha vida. Mudei muito quando estava quase terminando o livro. Minha mãe morreu, várias outras circunstâncias me jogaram num vórtex. Foi a coisa mais difícil que já fiz na vida, do ponto de vista profissional. Talvez não é a coisa mais difícil existencial, porque tem os filhos, os casamentos, a capoeira, mas o livro foi uma coisa enorme. E aí comecei a receber um monte de de feedbacks. Gente que fala para mim que o livro ajudou a se reconectar com sonhos... Isso para mim é extremamente gratificante, fico megafeliz. Ele é um catatau científico, mas também é um livro de autoajuda. Quis que fosse uma experiência agradável para a pessoa usar como uma plataforma para o mergulho onírico.
Depois desse livro veio a pandemia... E minha vida deu um twist. Casei de novo, meus filhos foram embora de onde eu morava, fiquei longe deles, vim morar no Rio de Janeiro por causa deles. Durante a pandemia escrevi o Sonho Manifesto, que de certa maneira são as consequências políticas do Oráculo. Um tom político em registro comedido, no sentido de dar elementos, contar histórias, construir um clima para dizer que sonhos não são só para consolidar memória, também ajudam a gente a se adaptar ao mundo, têm a ver com inteligência emocional, a noção de comunidade, a capacidade de sonhar junto, ter um coletivo imaginado – coisas fundamentais que vieram lá do Paleolítico, mas que a gente ainda usa no mundo urbano contemporâneo. Quem entende esta capacidade são os povos indígenas originários – e o Oráculo meio que leva para esse lugar. Por isso é que no Sonho Manifesto sugiro “10 exercícios de otimismo urgente”, um tratado de “otimismo apocalíptico” [risos], que expressam transformações que sofri na pandemia.
Quais foram? Parei de comer carne, passei a preparar meu alimento, praticar yoga diariamente, levar mais a sério a capoeira, a estar mais presente junto às pessoas que me importam, não apenas devaneando o tempo todo. Deu uma aterrada boa. Tive essa sensação de que a gente tem tudo pra sair do atoleiro em que se encontra como espécie. E, ao mesmo tempo, se a gente não fizer rápido o que precisa ser feito, não vai mais ter tempo. A gente precisa fazer a curadoria das nossas ancestralidades. Tem a ver com partilha, com compaixão, e com nosso metabolismo. Tem a ver com os mecanismos da serotonina, em oposição aos mecanismos da competição, da agressividade, do acúmulo, que tem a ver com a dopamina. Isso é uma simplificação, claro. Estou dizendo aqui um pouco daquilo que a gente aprendeu com a ciência psicodélica sobre os efeitos dessas substâncias no nosso corpo. O caminho da acumulação leva à doença da mercadoria, que se relaciona, biologicamente, a uma via dopaminérgica insaciável, a via cocaínica, que não tem fim. Ainda que a pessoa curta muito a viagem da dopamina, a plenitude não chega nunca, ela está sempre querendo mais. A outra via, que é a via da serotonina, seria por exemplo uma experiência com o MDMA, que também envolve a dopamina, mas sobretudo a serotonina, e aí a pessoa vai encontrar sensações de zero ansiedade, fraternidade, amor generalizado. Então o Sonho Manifesto foi também esse grito: político mesmo é dormir bem, comer bem, fazer exercícios, não ter relações tóxicas, não trabalhar demais. Mudar o mundo é lidar com a vinda dos robôs da inteligência artificial, pra tirar os bilionários dessa onda ruim. É a tarefa das nossas gerações.
A Morel edição Primavera acabou de sair e no site da Ipsis (ou no perfil @morel.revista) você pode dar uma espiada no conteúdo.
Top5 newsletters
Dentes Guardados, do Daniel Galera. Em tom confessional, fala sobre o que está lendo, o que está ouvindo e o que está vivendo, num registro sóbrio e afetuoso. Nesta, o autor de Até O Dia em Que o Cão Morreu se despede do Butiá, companheiro de longa data.
Margem, do Thiago Ney. Já aviso que, assim como o primeiro episódio da excepcional série The Bear, a leitura desta news pode causar ansiedade. É muito link bom. Ney é um super curador do que de mais relevante se publica pelo mundo, em comportamento, cultura, música, tecnologia etc.
Casa, de Gabrielle Estevans. Leituras não-lineares me apetecem: aqui, a jornalista catarinense radicada em Paris aproxima Gertrude Stein, Yuval Harari, Bill François e Manuel Puig para divagar sobre a importância da fofoca para a literatura.
Ein Filterkaffe, de David França Mendes. O roteirista carioca radicado em Colônia fala aqui sobre o game Before Your Eyes, jogado com os olhos; sobre a memória em Annie Ernaux; e sobre o misterioso conceito da suspensão de descrença.
Arts & Letters Only. Ótima curadoria de links literários aqui junta dicas pra quem quer saber quem é Jon Fosse, o Nobel norueguês que tem só dois livros publicados no Brasil (Melancolia, pela Tordesilhas, e o vertiginoso É a Ales, pela Cia das Letras).
Livro Triste / Livro Feliz
Dia Um, de Thiago Camelo (Cia das Letras). Achei curioso este livro não ter sido mais falado durante o Setembro Amarelo. Afinal, é uma história sobre suicídio. Narrado na chamada falsa segunda pessoa – em que o você na verdade é um ele, mas se parece com um eu e joga o leitor diretamente dentro da ação – , tenta desvendar os motivos pelos quais o irmão do narrador se atirou do sétimo andar. Embora o tema seja difícil e por vezes doloroso, o livro tem uma beleza de escrita, em que os sentimentos vão se desdobrando minuciosamente, e nenhum fato é o que aparenta.
Tuaterapia, de Tute (Perspectiva). O cartunista dono da página @tutehumor reúne aqui só tiras sobre o esporte nacional argentino – não é o futebol, e sim a psicanálise. Um gênio da graça e da concisão demonstra que sim, os psicanalistas são os mágicos que tiram cartolas de dentro dos coelhos (e essa frase é do Millôr).
Gracias pela leitura!
Abraços,
Ronaldo Bressane